O homicídio de três muçulmanos americanos reivindicado por um ateu que odeia todas as religiões e ataques de jihadistas contra cartoonistas e alvos judeus, em Paris e em Copenhaga, “para vingar Maomé”, intensificaram o debate sobre islamofobia, respeito pela fé e liberdade de expressão. Dois historiadores e um xeque sufi dão-nos a sua opinião. (Ler mais | Read more…)

Da esq. a dir: Deah Shaddy Barakat, 23 anos, a sua mulher Yusor Mohammad Abu-Salha, de 21 (o casamento realizara-se há seis meses), e a irmã desta, Razan Mohammad Abu-Salha, de 19
© independent.co.uk
O fim da tarde de 10 de Fevereiro aproximava-se, quando agentes da polícia, alertados por um telefonema, apareceram no apartamento de Deah Shaddy Barakat, 23 anos, da sua mulher Yusor Mohammad Abu-Salha, 21, e da irmã desta, Razan Mohammad Abu-Salha, 19.
Os três jovens, muçulmanos americanos, foram encontrados mortos, cada um com vários tiros na cabeça. O agressor é um vizinho, Craig Stephen Hicks. Na sua página de Facebook, gabava-se de ser “um ‘anti-teísta’ [sic], que abomina todas as religiões”.
Inicialmente, a polícia local atribuiu o triplo homicídio a uma disputa sobre um lugar de parqueamento, num condomínio pacato a três quilómetros do campus universitário de Chapel Hill, na Carolina do Norte.
O psiquiatra Mohammad Abu-Salha, pai de Yusor (casada apenas há seis meses) e de Razan, tem a certeza de que se tratou de “um crime de ódio”. Há muito que a filha e o genro se queixavam de que Hicks os assediava, criticando o facto de ela usar hijab (lenço que cobre os cabelos das mais devotas).
O FBI só decidiu investigar depois de o Twitter ter sido inundado com as hashtags #ChapelHillShooting [Tiroteio em Chapel Hill] e #MuslimLivesMatter [As vidas muçulmanas têm valor], forçando também os principais media a reportar o sucedido.
O contraste na atenção ficou mais evidente quando, a 14 de Fevereiro, a maioria dos telejornais abriu os noticiários com um ataque em Copenhaga, visando o cartoonista sueco Lars Vilks que, em 2007, desenhou o profeta do Islão vestido como um cão.
Graças aos seus guarda-costas, Vilks escapou ileso ao atentado durante o qual foram disparadas cerca de 200 balas contra um centro cultural onde se celebrava a liberdade de expressão e demonstrava solidariedade com o semanário satírico francês Charlie Hebdo.
Há um mês, jihadistas ali assassinaram 12 pessoas – entre eles os mais famosos ilustradores do jornal (Charb, Cabu, Honoré, Tignous e Wolinski) – para “vingar Maomé”.
Seguiu-se, entretanto, um outro ataque a uma sinagoga quando decorria uma cerimónia religiosa. Foi morto um guarda de segurança. No centro cultural, perdeu a vida o realizador de cinema Finn Norgaard, e três agentes da polícia ficarem feridos

O casal de Chapel Hill, Deah Barakat e Yusor, nunca viu esta fotografia do seu casamento. Familiares e amigos partilharam-na no Facebook, depois de ambos terem sido assassinados
© indianapolisrecorder.com
Os dois ataques em Copenhaga, onde há dez anos o jornal Jyllands-Posten causou furor ao publicar 12 cartoons de Maomé, um deles mostrando-o com um turbante em forma de bomba, foram obra de um só indivíduo [identificado como Omar Abdel Hamid El-Hussein, dinamarquês de 22 anos, que teria sido libertado semanas antes de uma cadeia onde esteve preso por ligação a vários “bandos extremistas”. Tinha em sua posse várias armas.]. A Polícia acabaria por o matar ao tentar capturá-lo [dois alegados cúmplices foram detidos].
Nos EUA, o assassino agiu sozinho. Craig Stephen Hicks, que a revista New Yorker descreveu como “fanático antirreligioso”, foi detido sem fiança.
Na sua casa as autoridades encontraram um pequeno arsenal. Era admirador dos “novos ateus”, como o escritor britânico Richard Dawkins, e citava-os muitas vezes. Acusado habitualmente de “fomentar a islamofobia”, Dawkins foi célere a condenar a mortandade.
A morte dos três jovens alarmou ainda mais os muçulmanos na América, que se queixam de serem, constantemente, “desumanizados como potenciais terroristas”. Mas também emocionou centenas de não muçulmanos que participaram em vigílias fúnebres.
Barakat, o marido de Yusor, tinha ascendência síria – organizara um serviço de voluntariado de apoio a refugiados. Estava no segundo ano do doutoramento em Medicina Dentária na Universidade da Carolina do Norte-Chapel Hill. A sua mulher deveria concluir este ano a licenciatura em Biologia e a cunhada sonhava ser arquitecta. Eram ambas alunas da Universidade Estadual da Carolina do Norte.

O cartoonista sueco Lars Vilks (aqui numa foto de Novembro de 2012) foi um dos alvos do ataque contra um café em Copenhaga. Ilustrador no jornal Jyllands-Posten, enfureceu muitos muçulmanos com a sua caricatura de Maomé vestido de cão
© Bjorn Lindgren | TT News Agency
Nem o triplo homicídio na América [o Ministério Público decidiu entretanto pedir a condenação à morte do suspeito] nem o ataque na Dinamarca haviam ocorrido quando pedi entrevistas a dois historiadores e ao presidente da Associação dos Muçulmanos Britânicos (AOBM). No entanto, as suas respostas a várias questões, enviadas por e-mail, talvez ajudem a entender o debate sobre Islamofobia, liberdade de expressão e respeito pela fé dos outros.
Comecemos com o Xeque David Rosser-Owen, Amir (líder) da AOBM, a mais antiga organização de muçulmanos britânicos, criada em 1889.
“O desagrado em relação aos cartoons ridicularizando o Profeta foi expresso por todas as comunidades muçulmanas, e até por não muçulmanos, porque há o sentimento de que o Charlie Hebdo ultrapassou os limites do aceitável – mas nada justifica reacções violentas”, disse o galês de Swansea, que deixou a Igreja Cristã Presbiteriana para ser o Xeque Daoud, Califa Naqshbandi, a maior ordem espiritual do Sufismo.
“Não há no Islão um conceito de blasfémia como o do Cristianismo. A existência de uma Lei de Blasfémia no Paquistão, por exemplo, é um legado do mandato britânico na Índia que foi, posteriormente, incorporado no Código Penal indiano para evitar ou controlar revoltas intercomunitárias.”
“Também é discutível se as representações gráficas do Profeta são ou não permitidas. Deveria haver, contudo, maior consciência de que a liberdade de expressão não pode ser liberdade de incitar ao ódio. Muitos muçulmanos sentiram-se magoados com a natureza grosseira das caricaturas, mas é também sua convicção que ao rejeitarem [os cartoons] não estão a justificar ofensas corporais e homicídio.”
“Não nos esqueçamos de que há apenas uma geração os jornais em língua alemã Völkischer Beobachter e Der Stürmer publicavam cartoons igualmente instigadores de ódio”, refere o xeque Daoud. Der Stürmer, por exemplo, propriedade de Julius Streicher, destacado membro do Partido Nazi, publicou um número especial em 1934 com caricaturas de judeus a extraírem sangue de crianças cristãs para usarem nos seus rituais.
Streicher, que autorizou artigos a favor do extermínio da “raça judaica”, foi condenado por crimes contra a Humanidade e executado após a II Guerra Mundial.

Flores depositadas junto à sinagoga de Copenhaga que, durante uma cerimónia religiosa, foi alvo de um atentado por parte do mesmo suspeito que disparou centenas de balas contra um centro cultural onde decorria um encontro de apoio à liberdade de expressão. Nos dois ataques foram mortas duas pessoas: um cineasta dinamarquês, no primeiro, e um membro da comunidade judaica, no segundo
© RumleSkafte | AP
O canadiano André Gagné, professor de História dos Primeiros Cristãos na Universidade de Concórdia, em Montreal, (Quebeque), é peremptório: “As ideias têm de ser abertas à crítica e ao ridículo”, frisa. “Não há nada sacrossanto nem intocável.”
“Numa sociedade secular, o limite à liberdade de expressão seria o incitamento a matar directamente outros indivíduos. Os que ameaçam a segurança de outrem devem ser denunciados às autoridades e presos – mas as suas palavras têm de ser inequívocas. Não contam questões sentimentalistas como ferir os sentimentos ou fazer troça de alguém.”
E Gagné sublinha: “Nada é sagrado em si próprio. Tradições e comunidades atribuem ‘santidade’ a livros, rituais, pessoas, seres sobrenaturais e lugares. O que é ‘sagrado’ para um grupo de indivíduos não é para outros.”
“Os que usam a sátira não consideram que o objecto da sua crítica seja de algum modo ‘sagrado’. É incorrecto que os muçulmanos vejam as caricaturas de Maomé como ‘incitamento à violência’, porque ninguém apelou a que fossem cometidas acções violentas contra eles.“
O historiador que também investiga a ascensão do “Novo Ateísmo”, adianta: “Ouvimos proponentes do ‘Islão moderado’ dizer que acções violentas não reflectem o Islão ‘verdadeiro’. Contudo, no que toca a ideologias religiosas, as pessoas gostam de escolher dos textos sagrados o que se adequa mais às suas necessidades e justifica o seu modo de vida.”
“Não é surpresa ouvir dizer que a religião é ‘pacífica’ e que os que agem violentamente interpretam mal a essência ‘pura’ das tradições. Mas os livros sagrados contêm bem e mal. No Médio Oriente, os muçulmanos que travam guerras uns contra os outros clamam agir de acordo com o Islão ‘verdadeiro’, mesmo que pertençam a facções adversárias no que diz respeito à tradição.”
Para que os muçulmanos possam libertar-se dos que aprisionaram o Islão como “religião de guerra e não de paz”, André Gagné considera que é obrigatório começar a educar os líderes das comunidades. “As sociedades ocidentais seculares têm de exigir aos pregadores em mesquitas e dirigentes de centros comunitários diplomas universitários reconhecidos”, defende.
“Por exemplo, em França, o antropólogo e filósofo Malek Chebel, no seu livro mais recente, Changer L’Islam: Dictionnaire des réformateurs musulmans des origines à nos jours (“Mudar o Islão: Dicionário dos reformistas muçulmanos das origens aos nossos dias”), destaca a importância de treinar imãs [os que conduzem a oração] “profissionais”.
Muitos grupos religiosos têm vindo a exigir líderes com diplomas universitários relacionados com a sua área de estudo. Sem formação não deve haver certificação nem reconhecimento!”
![Omar Abdel Hamid El-Hussein, dinamarquês de ascendência palestiniana, 22 anos, que teria sido libertado semanas antes por ligação a vários bandos extremistas. Em sua posse foram encontradas várias armas]. © www.bt.dk](https://margaridasantoslopes.files.wordpress.com/2015/02/rebelde.jpg?w=637)
Omar Abdel Hamid El-Hussein, dinamarquês de 22 anos, autor dos dois ataques em Copenhaga, teria sido libertado semanas antes da cadeia onde esteve preso por ligação a vários “bandos extremistas”
© http://www.bt.dk
Daoud Rosser-Owen já observa mudanças: “Muitos dos novos imãs e líderes comunitários no Reino Unido têm agora mais educação superior (incluindo em Ciências Islâmicas) do que tinham os primeiros; e num número crescente de mesquitas os sermões, nas preces de sexta-feira, passaram a ser feitos em inglês.”
“A maioria dos muçulmanos migrantes na Europa, América, Austrália e Nova Zelândia pertence a uma ou outra ordem sufi e alguns provêm de aldeias onde a cultura local está enraizada no Sufismo.”
“Assim”, acredita, “não há ligação às actividades de organizações radicais muçulmanas. O mundo árabe, pelo contrário, sofreu mais do que muitas áreas do mundo muçulmano das políticas dos poderes coloniais (em particular da França e da Itália) e dos regimes sucessores que eles deixaram e se perpetuaram. Associado a isto tem estado a propagação, facilitada pela riqueza petrolífera, do Wahhabismo da Arábia Saudita, um desvio extremamente herético do Islão.”
O alemão Reinhard Schulze, professor de Estudos Islâmicos e Filologia Oriental na Universidade de Berna (Suíça), também enfatiza a necessidade de os muçulmanos se interrogarem sobre o que estão a fazer ao Islão: “Antes de mais, as elites intelectuais devem reconhecer que são responsáveis, não pelos assassínios cometidos por terroristas, mas pelo facto de terem perdido o controlo sobre uma gestão pluralista do Islão.”
“Intelectuais muçulmanos têm de se esforçar por recuperar uma autoridade discursiva no contexto islâmico”, acrescenta.
“Como este problema também é, em princípio, relevante, para as instituições judaicas e cristãs pensadores e figuras públicas muçulmanas não devem ficar isolados mas ser integrados num debate geral sobre como lidar com a actual desintegração das tradições religiosas.”

© Associated Press
Schulze, autor de A Modern History of the Islamic World, alerta para uma “necessidade urgente de memória”, evocando os anos 1960, “quando havia um debate livre sobre o contexto histórico do Islão no mundo árabe-muçulmano.”
Ele responsabiliza Estados, como o Egipto de Nasser e a Síria do partido Baas, por terem dado demasiado poder a pregadores e mesquitas conservadoras, forçando ao exílio os pensadores livres e fomentando um vazio que tem sido preenchido pelo Wahhabismo.
“A ‘Primavera Árabe’ foi um ponto de partida”, acredita o historiador germânico. “Pela primeira vez em quase 50 anos, a nova geração em muitos países árabes tentou restaurar a hegemonia da sociedade civil sobre o Estado.”
“No âmbito desta aspiração, o movimento de protesto criou um novo público crítico e pluralista que permitiu liberdade de expressão e troca de ideias que até então haviam sido banidas da esfera pública. É aflitivo assistir como o entusiasmo esmoreceu devido a pontos de vista conservadores da geração parental para quem ‘lei e ordem’ estão acima de tudo.
“O vazio social criado pelas elites pró-Estado nos últimos 30 anos só pode ser preenchido por uma política que se centre na integração, oferecendo liberdade, escolha, segurança social e planos que valham a pena ser vividos”, concluiu Schulze.
“A justificação destes valores que certificam integração e solidariedade sociais podem, igualmente, basear-se em pontos de vista religiosos mundiais. E aqui entra de novo o Islão.”
“Intelectuais muçulmanos também serão confrontados com o problema de como justificar determinada ordem social, democrática, cívica e pluralista. E terão de aceitar o facto de tal como a justificação religiosa não legitimar qualquer forma de hegemonia discursiva, formas não religiosas de justificação desses valores poderem clamar por igual validação.”

Shaikh David Rosser-Owen, Amir (líder) da Associação dos Muçulmanos Britânicos, pertenceu à Igreja Prebisteriana do País de Gales, Reino Unido, onde nasceu, até se converter ao Islão

André Gagné, professor de História dos Primeiros Cristãos e Literatura na Universidade de Concórdia, em Montreal, (Quebeque)

Reinhard Schulze, professor de Estudos Islâmicos e Filologia Oriental na Universidade de Berna (Suíça), é também autor do livro A Modern History of the Islamic World
Este artigo, com outro título e agora actualizado, foi publicado originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Março de 2015 | This article, under a different headline and now updated, was originally published in the Portuguese magazine ALÉM-MAR, March 2015 edition