Inspirada pela mãe que “adoptou” um menino no Quénia e pelo avô que salvou 81 vidas na Segunda Guerra Mundial, a americana Nyla Rodgers criou uma organização não-governamental (ONG), para fomentar o potencial “contra a piedade em África”. (Ler mais | Read more…)

Nyla Rodgers e Bernard Olando, o irmão adoptivo, no Quénia, 2006
© Mama Hope
Em Setembro de 2002, Nyla Rodgers estava na Áustria, a completar um mestrado em Paz e Transformação de Conflitos, quando recebeu um telefonema da mãe, residente em Santa Barbara, na Califórnia, a contar-lhe como decidira “adoptar” — o termo correcto é sponsor (patrocinar) — uma criança órfã em África.
A decisão foi tomada numa noite em que Stephanie, antiga professora de dança e escrita criativa, viu um anúncio na televisão a pedir contributos individuais de 1000 dólares cada, para ajudar meninos e meninas cujos pais haviam morrido de sida.
“Outra pessoa teria mudado de canal, estava no intervalo de um programa, mas ela ficou entusiasmada; ligou imediatamente para a Associação Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, falou com a responsável pelo apelo, Anastasia Juma, e inscreveu-se”, contou-me Nyla, por telefone, a partir de São Francisco (EUA). É aqui que funciona a sede da organização não-governamental Mama Hope (Esperança de Mãe), que ela fundou.
O seu objectivo, através de projectos de sustentabilidade económica que apelam ao empreendedorismo e não à caridade, é “quebrar os estereótipos que vêem os africanos ora como vítimas ou agressores, ignorando o seu potencial de liderança”.
Para angariar o montante necessário para o sponsorhip, Stephanie organizou uma festa em sua casa com amigos, adiantou Nyla, uma loura jovial de 32 anos. Pouco tempo depois, recebia uma carta com a fotografia de Bernard Olando, 12 anos, natural de Kakemega, no Quénia.
Colocou o retrato do rapaz, de uniforme azul e sorriso tímido, numa moldura de prata, ao lado de outra com o rosto da “irmã” americana. As cartas trocadas entre dois continentes terminavam sempre da mesma forma: Love, your son Bernard/Love, your mother Stephanie.
Em 2005, quando planeava ir ao Quénia visitar Bernard, diagnosticaram a Stephanie um cancro nos ovários. Foi uma doença fulminante. A 2 de Janeiro de 2006, ela morreu, com 54 anos, e Nyla, que tinha 27, ficou devastada.
“Eu era única filha de uma mãe solteira; ela era tudo para mim. Quando desapareceu, foi como ter perdido toda a minha família”, recordou a fundadora do Mama Hope, um projecto que já “mudou a vida de 100 mil pessoas”, no Quénia, na Tanzânia, no Gana e no Uganda.
Semanas depois da perda daquela que considerava a sua “melhor amiga”, incapaz de superar o sofrimento, Nyla decidiu ir cumprir o sonho da mãe. Apanhou um avião e foi ver o “irmão” para lhe dizer o quanto era amado. “Quando lá cheguei fiquei estupefacta”, acrescentou.
“Esperavam-me, ao som de Amazing Grace, a canção tocada no funeral da minha mãe, não apenas Bernard, na altura com 16 anos, mas centenas de mulheres cujas vidas se tinham transformado com os mil dólares que ela enviara.”
Bernard segurava nas mãos uma foto de Stephanie que era também a favorita de Nyla — a última que tiraram juntas. O menino também já tinha perdido os seus pais biológicos, e ambos se sentiram muito próximos. “Tínhamo-nos um ao outro para partilhar a nossa tristeza.”
O sonho de Bernard, que concluiu entretanto o liceu com notas brilhantes, é ser médico num hospital do Mama Hope, e é para isso que está a estudar.

Nyla Rogers: “Não podemos chegar, como fazem algumas ONG, e impor o nosso modelo. Não podemos aparecer como peritos e ignorar os líderes comunitários. Nós temos de ser parceiros, não chefes”
© Mama Hope
Anastasia Juma, da associação que colocara o anúncio na televisão, informou todos os envolvidos no seu projecto de que Nyla iria suceder a Stephanie, porque esta, quando lhe comunicou que o cancro era incurável e não iria sobreviver, lhe dissera para não se preocupar.
Não tinha dúvidas de que a filha seguiria os seus passos. E Nyla, entendendo que “a dor pode ser transformada em amor”, não desapontou quem nela depositava esperanças.
“A primeira coisa a fazer é ouvir as comunidades”, explicou na entrevista. “Não podemos chegar, como fazem algumas ONG, e impor o nosso modelo. Não podemos aparecer como peritos e ignorar os líderes comunitários. Nós temos de ser parceiros, não chefes.”
“É claro que é mais fácil obter fundos se os dadores virem imagens de crianças subnutridas, mas não é isso que pretendemos: nós queremos dar a conhecer o potencial dos africanos para serem bem-sucedidos!”
Até agora, adianta Nyla, “garantimos o êxito de quase 100% dos nossos projectos, porque nunca avançamos sem antes assegurar a sua sustentabilidade.
“Por exemplo, quando se planeia a construção de uma escola, é preciso garantir que dois terços dos alunos podem pagar as aulas, porque isso permite que pelo menos 100 crianças beneficiem de ensino gratuito. A escola torna-se, assim, auto-suficiente.”

“Somos contra a caridade das celebridades porque cada vez que enviam materiais, como T-shirts ou calçado, que as pessoas nem sequer precisam, estão a prejudicar os artesãos e os comerciantes locais – estão a dificultar o desenvolvimento regional”, diz Nyla Rogers
© Mama Hope
A relação com os governos dos países onde o Mama Hope opera não é conflituosa, afirmou Nyla. “Não assumimos protagonismos, somos uma espécie de voluntários fora do radar que apenas dão apoio às comunidades — elas é que são soberanas. E são elas as estrelas. Não precisamos de George Clooney para promover o nosso trabalho.”
“Somos contra a caridade das celebridades porque cada vez que enviam materiais, como T-shirts ou calçado, que as pessoas nem sequer precisam, estão a prejudicar os artesãos e os comerciantes locais; estão a dificultar o desenvolvimento regional.”
Com ambições para se expandir por mais países africanos, o Mama Hope funciona apenas com três pessoas nos EUA — duas a tempo inteiro e uma a tempo parcial —, “propositadamente para que as comunidades locais desenvolvam as suas estruturas” esclareceu Nyla Rodgers.
Em Kisumu, no Quénia, a ONG da filha de Stephanie ajudou a construir um centro de acolhimento para crianças com histórias familiares de sida, negligência abusos e/ou pobreza.
Rapazes e raparigas são integrados num programa de reabilitação durante um ano até serem acolhidos em residências permanentes.
Em Budondo, no Uganda, arranjou financiadores para um centro de saúde que serve 18 mil pessoas, a maioria mulheres vulneráveis. Em Bawjiase, no Gana, está a ser erigido um orfanato que vai servir mais de 60 crianças.

Para que os americanos e outros ocidentais”deixem de olhar para os africanos como coitadinhos”, Nyla Rogers e a sua equipa lançaram três vídeos que designaram por Stop the pity — Unlock the potencial (o slogan na sua T-shirt)
© Mama Hope
Há outros projectos (de irrigação ou de florestação, por exemplo) já consolidados ou ainda no papel, à espera de fundos, que deixam Nyla “muito orgulhosa”.
Para que os americanos e outros ocidentais deixem de olhar para os africanos como coitadinhos, ela e a sua equipa lançaram recentemente três vídeos que designaram por Stop the pity — Unlock the potencial.
No primeiro a ser divulgado, vemos Alex, um miúdo da Escola St. Timothy, em Moshi, na Tanzânia a descrever o filme Commando, de Arnold Schwarzenegger. No final, surge a frase: “Acabe com o estereótipo: Alex não é uma criança soldado, uma vítima da sida, um órfão.
Alex é inteligente, curioso, feliz, esperançoso, atlético, criativo, bilingue, imaginativo, pleno de recursos, hilariante, honesto, ambicioso, sarcástico, afectuoso… Alex tem nove anos.”
Se Stephanie foi a fonte de inspiração para o Mama Hope, a figura que influenciou a escolha do mestrado de Nyla Rodgers foi o avô materno. “Ele combateu na Segunda Guerra Mundial e, no Dia D, desembarcou na Normandia como paramédico”, revelou nesta entrevista.
“Ele e outro colega, sozinhos, resgataram 81 prisioneiros e refugiaram-nos numa igreja. Quando chegaram para os matar, os nazis repararam que entre eles estavam não apenas soldados americanos mas também alemães. Pouparam-lhes a vida, talvez impressionados com aquele gesto de altruísmo.”
“O meu avô foi homenageado como um herói porque, aos 19 anos, ajudou a salvar 81 vidas; e eu aprendi, ao ouvir a história dele, tantas vezes contada pela minha mãe, que todas as vidas podem ser salvas”.
Este artigo foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 13 de Maio de 2012 | This article was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on May 13, 2012