Considerada uma das maiores especialistas em terrorismo nos EUA, Jessica Stern pertenceu ao Conselho Nacional de Segurança do ex-Presidente Bill Clinton. Em 1973, foi violada por um homem que terá sido vítima de padres pedófilos. Também suspeita que o seu avô, judeu, abusou dela. E admite que a sua avó tenha sido molestada por nazis. No Paquistão e no Afeganistão, ouviu histórias de rapazes violados em escolas islâmicas. Perdeu a vergonha e publicou um livro, Denial, onde conta tudo. História contada aqui na primeira pessoa. (Ler mais | Read more….)

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Era 1 de Outubro de 1973. Eu tinha 15 anos e a minha irmã 14. O nosso pai, que é físico, estava na Noruega, de visita a um instituto de tecnologia.
Nós, como era hábito todas as segundas-feiras, depois das aulas de ballet, fomos para casa de Lisa, a primeira de três madrastas desde a morte da nossa mãe.
Nessa noite, em particular, ficámos sozinhas a fazer os trabalhos da escola. O bairro era seguro. Não havia necessidade de trancar a porta à chave.
Quem é que iria fazer mal a duas crianças em Concord (Massachusetts), considerada por muitos o berço dos Estados Unidos? Este é o lugar onde se inscreveu a frase “shot heard round the world“, de Ralph Waldo Emerson, para referir o primeiro tiro da Revolução Americana, na batalha iniciada em 19 de Abril de 1775.
Esta é uma cidade pequena, com pequenos crimes, onde o Concord Journal ainda noticia acidentes envolvendo ovelhas e vacas. Mas foi nesta cidade, há mais de três décadas, que Brian X. Beat, vindo da povoação vizinha de Milford, entrou no nosso quarto, e abusou de mim e da minha irmã.
Ameaçou-nos com uma arma. A arma, disse ele, depois de nos obrigar a prometer que não o denunciávamos, era uma pistola de fulminantes. Daquelas com que os garotos antigamente brincavam aos cowboys.
No total, de 1971 a 1973, Brian Beat violou 44 raparigas, entre os nove e os 19 anos. Uma delas matou-se. Foi condenado por três destes crimes, a 18 anos de cadeia. Ele era uma pessoa traumatizada. Descobriu na infância que a sua mãe o abandonara e que tinha sido adoptado pela tia.
Frequentara uma igreja e um liceu onde vários padres pedófilos foram alvo de processos criminais. O psiquiatra na cadeia não o avaliou como perigoso, mas, uma manhã, quando a mãe adoptiva saía de casa, encontrou-o enforcado na soleira da porta.
Perguntam-me por que é que eu, elogiada como “a maior especialista em terrorismo nos Estados Unidos”, professora na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard e antiga consultora de segurança do Presidente Bill Clinton, decidi partilhar com estranhos traumas, segredos e pensamentos mais íntimos.
Pois bem, Denial – A Memoir of Terror não era o que eu planeava escrever. Eu queria escrever outro livro sobre terrorismo, depois de Terror in the Name of God – Why Religious Militants Kill.

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Como experiência, escrevi uma pequena brochura, a relatar a minha violação. Tencionava usar a história para contar como é sentirmo-nos aterrorizados. Não tinha a certeza, naquela altura, se me identificaria com o “eu” nessa brochura.
Quando o meu editor a viu, sugeriu-me que deitasse o resto do livro fora, e escrevesse outro sobre a minha violação e a reacção do meu marido. Fiquei assustada. Tive medo de que, ao escrever sobre a minha própria experiência de terror, pudesse arruinar a minha carreira.
Durante seis meses, continuei a escrever o meu livro sobre terrorismo, que ainda não acabei. No entanto, nos dias que passava na biblioteca, cedi a uma irresistível curiosidade; voltei à esquadra na minha cidade natal e requeri os ficheiros completos.
O agente que fez as cópias dos ficheiros leu-os e ficou surpreendido com a quantidade de informação que continham. Ficou intrigado por o crime nunca ter sido resolvido.
Quando a violação ocorreu, em 1973, a Polícia estava em negação: não acreditou em mim e na minha irmã quando dissemos que não conhecíamos o violador, ou que este crime tão brutal pudesse ter sido cometido na nossa terrinha segura e suburbana. Isto não é diferente do que está a acontecer agora, na Igreja Católica. Incredulidade e negação são os caminhos mais fáceis.
Trinta e cinco anos depois, a Polícia acreditou finalmente em mim. Percebeu que se tratava de um violador em série de crianças e que talvez ainda estivesse a monte.
Assim que reabriu o caso, foi irresistível escrever um livro sobre a investigação. Eu sabia que o “verdadeiro crime” poderia interessar a outras pessoas. Mas, mais do que isso, senti necessidade de escrever sobre o que é viver com a memória da violação e do abuso.
Na realidade, nunca tinha “sentido” a raiva e a dor que eu deveria ter sentido enquanto criança. Também eu estava em negação. O que senti foi vergonha.
No entanto, ao revisitar a violação 35 anos depois, dei por mim a sentir raiva – não apenas contra o meu violador, mas contra todos os violadores de crianças, em todo o mundo, incluindo os membros do clero que abusam de crianças. Eu queria sentir isso!
Sim, é verdade que há questões em aberto no meu livro. Também fui violada pelo meu avô? A minha avó, judia como eu, foi violada por soldados nazis?

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O meu violador foi vítima de padres pedófilos? Não tenho a certeza do que o meu avô me fez. Ele era um cientista brilhante que, involuntariamente, matou a minha mãe devido a um excesso de raios X.
Com base numa carta encontrada 50 anos depois de a minha mãe a ter escrito, fiquei a saber que eu demonstrava, aos três anos (idade em que eu e a minha irmã ficámos órfãs) o que hoje os assistentes sociais considerariam sinais preocupantes de possíveis abusos sexuais.
Esses comportamentos, se hoje fossem observados por alguém de fora da família, teriam desencadeado uma investigação mais profunda.
A minha avó contou-me que, quando eu era miúda, a minha madrasta a tinha avisado de que o meu avô abusava sexualmente de mim. A minha avó achou que esta informação era a “prova” de que a minha madrasta era instável. Nunca questionou o meu avô.
Na altura, quando ela me narrou isso, há cerca de 30 anos, eu já sabia o que era ser violada sob a ameaça de uma arma. Foi o que me aconteceu aos 15 anos, e essa memória ficou registada na polícia e no hospital.
Mas eu não compreendia o que queria dizer abuso sexual de crianças; ou o que, se fossem verdadeiras, as informações da minha madrasta poderiam significar para a minha saúde mental a longo prazo.
Quando era miúda, sei que tinha pesadelos com um pénis flácido, e que tinha pavor de alguns recantos da casa – mas sonhos e sensações não provam nada. Lembro-me de o meu avô tomar banho comigo, quando eu já tinha idade suficiente para sentir repugnância pelo seu corpo.
Sei também que, na minha adolescência, ele era um homem libertino, cujo interesse nos meus mamilos me deixava desconfortável – também era uma pessoa adorável.
Que paradoxo! O incidente do banho não pode, isoladamente, ser considerado abuso sexual, mas não tenho a certeza do que mais ele me fez, porque as minhas recordações são muito vagas.
Compreendo que isto possa frustrar os leitores, mas a incerteza frustrante na mente dos leitores reflecte a minha própria névoa frustrante (ou será protectora?). Este não saber precisamente o que ocorreu faz parte da dor com que muitas vítimas vivem.
Também não tenho certezas sobre se a minha avó foi violada, porque ela já morreu e não lhe perguntei. Embora o meu pai tenha feito parecer como violação a cena em que descreve soldados nazis das SS fechados no quarto com a sua mãe, na Alemanha, por volta de 1944, ele insiste em que ela tinha “joelhos de lavadeira”, e ninguém olharia para ela como um objecto sexual.
A violação tem sido, porém, usada como arma de guerra. Contra os mais novos e os mais velhos, não apenas contra os que são vistos como objectos sexuais. Por isso, não acho que sejam convincentes os argumentos do meu pai, embora também não possa afirmar que ele está errado.
E o meu violador? Terá sido violado por padres? Também neste caso encontrei apenas indícios circunstanciais, nada que se assemelhe a provas.
Há muitas razões para suspeitar que ele foi vítima de abusos – não apenas porque estes se registaram regularmente na sua igreja e povoação, mas também devido aos rituais (deixava pedras e poemas) que ele reproduzia em alguns dos crimes que cometeu.
Era uma pessoa confusa quanto à sua sexualidade. Cliente assíduo de bares de gays, justificou a recusa em servir no Exército com a sua homossexualidade, mas tinha relações sexuais com mulheres e violou muitas meninas.

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Infelizmente, os abusos sexuais de crianças são um problema relativamente comum. Ocorrem por todo o mundo e em todas as religiões, não apenas na Igreja Católica.
Também são relativamente comuns em escolas seculares. É sempre uma tragédia quando acontecem. Às vezes, as vítimas pensam que, psicologicamente, não ficaram afectadas, mas o impacto pode ser enganador, à medida que o tempo passa.
Só depois de investigar a minha própria violação e de me permitir a mim própria sentir o terror, a raiva, a tristeza que eu sempre mantivera escondidos é que compreendi a importância de algo que ouvi no Paquistão mas tinha receio de divulgar publicamente – os abusos sexuais de crianças nas madrassas [escolas religiosas] paquistanesas e a violação de rapazes no Afeganistão.
Aqui, estes abusos são geralmente cometidos às quintas-feiras, também conhecidas como “o dia de amar os homens”, porque as orações islâmicas de sexta-feira “absolvem os pecadores”.
É extraordinário que estes abusos sexuais sejam frequentemente discutidos nos media paquistaneses e não sejam conhecidos no Ocidente. Todavia, os militares ocidentais sabem muito bem que comandantes e senhores da guerra afegãos andam a violar rapazes, mas não falam sobre isso, e nunca lemos sobre isso nos jornais.
Os membros dos grupos terroristas jihadistas que entrevistei para o meu último livro falavam-me sobre as humilhações da civilização islâmica, alegadamente às mãos do Ocidente, como um dos factores que os levou a escolher essa “profissão”.
Comecei a interrogar-me sobre se este sentimento de humilhação, rotineiramente descrito pelos islamistas mais extremistas, poderia ter sido causado por violações ou abusos sexuais.
Vou ser franca: não acredito que violações ou abusos sexuais sejam “a raiz” do terrorismo. Mas acredito que podem ser um factor de risco. É minha esperança fervorosa que, ao revelar este segredo aberto, mais estudos possam vir a ser realizados – por médicos, teólogos, académicos, ONG.

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Será muito difícil, porque a vergonha deixa as vítimas passivas, tal como aconteceu durante tantos anos na Igreja Católica. Talvez, quando a condenação surgir, como se verifica agora na Igreja Católica, e as vítimas [no Afeganistão e Paquistão] decidirem falar, a prática destes abusos termine.
Eis o que eu acho que o Papa e a Igreja Católica devem compreender. Negar a dor dos outros é um sintoma de indiferença moral.
A negação ajuda o espectador, que não suporta viver com o conhecimento da dor da vítima, sobretudo quando se sente, de algum modo, responsável por ela. Mas a negação é, em muitos casos, um ataque secundário.
A vítima, também ela, não suporta acreditar. Pode enterrar e desvalorizar a sua dor, ou dissociar-se dela. Pode entregar-se ao álcool ou às drogas, tornar-se inconscientemente promíscua, compelida a repetir uma e outra vez a violação, ora no papel de vítima, ora no de perpetrador.
Ser tratada como objecto no sonho de um perpetrador, e não como objecto do seu próprio sonho, já é suficientemente mau. Mas quando os observadores se tornam cúmplices das vítimas no desejo destas de esquecimento, também se tornam perpetradores.
Quando as autoridades não acreditam na vítima, quando os espectadores recusam o que não suportam saber, roubam à vítima a sua existência normal neste mundo. Observador e vítima estão em conluio para a negação ou o esquecimento e, ao fazerem isso, repetem os abusos.

A fundação espanhola Aid to Children and Adolescents at Risk (ANAR) criou um outdoor revolucionário, para ajudar crianças vítimas de abusos a pedirem ajuda sem correr mais riscos. Através de uma camada superior lenticular, o cartaz mostra imagens diferentes de acordo com o ângulo de visão do leitor. Um adulto com mais de 1,35m de altura vê apenas uma criança triste e a mensagem: “Às vezes, os maus tratos infantis só são visíveis para a criança que sofre”. Os mais novos e mais baixinhos, com 1,20m, vêem feridas no rosto do menino no cartaz, e outra mensagem (com o telefone da fundação): “Se alguém te magoar, liga e nós ajudamos-te”. O vídeo pode ser visto aqui
Não posso dizer que o meu violador já não me atormenta, depois de descobrir que ele morreu. Ainda me atormenta, mas menos. Acredito que ter sido violada influenciou as minhas escolhas profissionais, de amigos, de parceiros.
Eu queria ser escritora mas saltei as cenas bélicas de Guerra e Paz e a minha tese de doutoramento foi sobre armas químicas, centrada na mecânica da violência e com pouca atenção às baixas humanas. A violência repugnava-me e fascinava-me.
Tornei-me também demasiado protectora do meu filho. Não sou uma pessoa diferente por ter confrontado os meus terrores. Ainda não suporto determinados sons e odores. O cheiro de míldio deprime-me. Um ruído estridente deixa-me à beira de gritar.
O que é diferente, agora, é eu compreender tudo isso, e estar alerta quando isso acontece. As minhas relações com a família e os outros são agora mais honestas.
É importante reconhecer a sensação de medo porque isso nos dá segurança. Eu ia sem medo entrevistar terroristas aos seus campos de treino. Agora, quando é necessário sentir medo, já reconheço essa sensação.
Por causa disso e por ter um filho, já não vou para o terreno entrevistar terroristas. Só entrevisto antigos terroristas, ou jovens que se sentem atraídos para a ideia de terrorismo mas que, provavelmente, jamais entrarão num grupo terrorista.
Uma pessoa perguntou-me se aconselharia outras vítimas de violação a procurar e a confrontar os violadores. Não o faria, excepto em caso de extrema necessidade. Revisitar um trauma, como a violação, pode ser muito desestabilizador.
A minha irmã e eu não recebemos terapia depois de termos sido violadas, porque, naquela época, ninguém entendia o impacto emocional a longo prazo. Mas acho que a terapia pode ser uma boa ideia.
Nos ficheiros que encontrei na esquadra, a polícia atestou que eu era “stern” (dura) – que é, curiosamente, o meu apelido. Não gosto da palavra “vítima” nem da palavra “sobrevivente”.
Somos vítimas e sobreviventes, é certo, mas não gostaria que me definissem como tal. Preferia ser conhecida como uma pessoa que deu o seu melhor para amar a sua família e que, como pessoa, tentou compartilhar a verdade, mesmo que tenha sido, ou precisamente por ser, muito difícil.
Este artigo, agora com um título diferente e actualizado, foi originalmente publicado no jornal PÚBLICO em 14 de Maio de 2010, a partir de uma entrevista por “e-mail” com Jessica Stern e baseada no seu livro “Denial – A Memoir of Terror”| This article, now under a different headline and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on May 14, 2010, based on an e-mail interview with Jessica Stern and on her book “Denial – A Memoir of Terror”