O Irão tira o véu no DocLisboa

O Irão dos rockers e dos rappers. O Irão de Mousavi e dos Green Days. O Irão de Ahmadinejad e do Apocalipse Now. O Irão da esperança e da derrota. O Irão tira o véu no DocLisboa. Nunca o vimos assim. (Ler mais | Read more…)

Negar Shaghaghi e Ashkan Koshanejad (os actores) com Bahman Ghobadi (o realizador), na estreia de No One Knows About The Persian Cats, no 62º Festival de Cannes (França)
© zimbio.com

Em Karaj, arredores de Teerão, 600 iranianos assistiram, em Agosto de 2007, ao “primeiro e único” concerto de rock desde a Revolução Islâmica de 1979. Este evento, ilegal, foi organizado por Ashkan Koshanejad, que pagou com 21 dias de prisão “o melhor momento” da sua vida.

“Por uma noite, actuei para o povo do meu país e enchi-me de alegria”. Na cadeia, partilhando a cela com homicidas, interrogou-se: “Será que a música é um crime igual a assassínio? Fui acusado de criar um ambiente em que os jovens quisessem dançar e rir…”

A prisão não vergou Ashkan, o líder do “mais importante grupo de música alternativa iraniana”, como proclamou a imprensa britânica. Uma vez libertado, foi à procura de outros músicos e vocalistas que quisessem juntar-se numa banda que ele e a sua namorada, Negar Shaghaghi, estavam a formar.

Essa busca, arrojada e alucinante, resultou no filme No One Knows About the Persian Cats, de Bahman Ghobadi, que o DocLisboa exibe dia 20 [de Outubro de 2009], na Culturgest.

É de Londres, onde pediram asilo, que Ashkan e Negar nos contam, por e-mail, o que é pertencer a um grupo que não se conforma com as restrições impostas por um regime obtuso.

“No filme há cenas com gatos”, escreveu ele. “E porquê gatos? Porquê gatos persas? Porque os gatos persas são criaturas benignas que fazem o mínimo ruído. O título [do filme] sugere, no entanto, que estes gatos persas estão esquecidos e são frequentemente agredidos apesar do seu carácter calmo e bondoso.”

Não foi difícil ao realizador, Ghobadi, encontrar estes “felinos”. Explicou Negar: “Quem encontra um de nós, encontra o resto. A palavra espalhou-se. Eu e Ashkan fomos até ao escritório dele com a nossa música. Ele ouviu, falámos, sugeriu que entrássemos no seu filme, e assim fizemos. Tudo no filme é real, até as cenas com a polícia. Essas cenas ilustram uma realidade que continua a repetir-se todos os dias no Irão.”

Interrompemos aqui a conversa para dar alguns pormenores sobre a “realidade” que se tornou mais amarga depois de, em 2005, o ultraconservador Mahmoud Ahmadinejad ter substituído o reformista Mohammad Khatami na presidência da República.

Um dos primeiros actos de Ahmadinejad foi nomear para ministro da Cultura um ex-comandante do Exército dos Guardas da Revolução com passagem pelos serviços secretos, Saffar Harandi. A missão deste era impor uma “interpretação revolucionária das leis do Islão”: nada de vozes femininas e apenas “música clássica que desenvolve o espiritualismo”.

A “realidade” é que até mesmo concertos de música clássica persa se tornaram cada vez mais raros, porque o ministério não autoriza espectáculos ao vivo. Embora legal e com salários pagos pelo Governo, a Orquestra Sinfónica Nacional do Irão só excepcionalmente toca(va) no país. Músicos de diferentes tradições dão festas privadas para ganhar a vida.

A música popular, que conseguiu reemergir após o primeiro mandato de Khatami, no final dos anos 1990, foi forçada a ficar underground. Bandas pop e rock começaram a gravar às escondidas e a distribuir os seus CD através de redes de amigos e admiradores.

Se a música foi estrangulada, o mesmo aconteceu com a pintura e a escultura, o cinema e o teatro, os livros e os jornais. No Museu de Arte Moderna de Teerão há uma cave escura onde se guarda a mais valiosa colecção de arte fora da Europa e dos EUA.

As melhores pinturas e esculturas dos últimos dois séculos estão há três décadas escondidas dos iranianos – Renoir, Monet, Picasso, Pissarro, Magritte, Pollock, Bacon, Tolouse-Lautrec, Dali e Warhol. [Em 2012, os quadros, avaliados em mais de 2500 milhões de dólares, viram finalmente a luz do dia.]

A música popular, que conseguiu reemergir após o primeiro mandato do presidente reformista Mohammad Khatami, no final dos anos 1990, foi forçada a ficar underground. Bandas pop e rock começaram a gravar às escondidas e a distribuir os seus CD através de redes de amigos e admiradores
© filmcomment.com

Este tesouro, reunido pela ex-imperatriz Farah Diba Pahlavi nos últimos anos do reinado do Xá, representa, para o regime islâmico, a “decadência da cultura ocidental”.

Algumas das obras “menos problemáticas” chegaram a ser exibidas, temporariamente, sob a administração de Khatami, mas, assim que Ahmadinejad chegou ao poder, determinou que a única arte permitida é a que “glorifica o martírio na jihad“, ou guerra santa.

Ashkan e Negar estão mais interessados em correr do calvário do que em canonizá-lo. Têm sorte de pertencer a um meio que permite liberdade artística.

“A minha família é da classe média, intelectuais de mente aberta e muito receptivos à música e às artes, mas a coacção é inegável da parte de quem considera estas actividades uma violação dos valores morais da sociedade”, reconhece Negar. A minha família quer que eu realize a minha ambição, mas esta ambição não está isenta de riscos.”

A mãe de Ashkan, também ela ligada às artes, teve de deixar o Irão. Foi ela quem, da Alemanha, lhe fez chegar o dinheiro necessário para pagar o passaporte e o visto (ilegais) que ele precisava para sair do país. “Eu não escolhi a música”, declara o baixista que nasceu em 1985, antes da revolução do Ayatollah Khomeini.

“A música escolheu-me quando eu tinha 13 anos. Quando tocava a minha guitarra, a música tornava-se abrigo, o espaço onde posso dizer o que me apetece.”

Ashkan experimentou vários tipos de música, mas acabou envolvido no indie rock. “Fiz tudo sozinho, desde compor, gravar, misturar. É possível que o rock independente mundial tenha nascido de uma crise financeira na indústria mas, para mim, a independência foi a única alternativa para criar música.”

Negar concorda: “Graças à Net e à globalização, os músicos no Irão têm acesso a qualquer forma de música. Comecei por me interessar pelas artes performativas, fiz ballet, escrevi e representei peças na universidade.”

“Mas tinha também o desejo de me ligar a mais e mais pessoas, e a música é uma arte muito social. Tem o poder de fazer mover as pessoas, de as influenciar. Quando conheci Ash, decidimos unir esforços e criar algo para o mundo”. Assim nasceu o projecto Take It Easy Hospital, que está aqui:

“O Irão está cheio de histórias, e só algumas chegam aos media“, diz Negar Shaghaghi. “Esta nova geração de músicos canta histórias que não vemos na BBC”
© Human Rights Watch Film Festival

São a Net e a televisão por cabo que fazem chegar a música proibida aos iranianos. “A moderna comunidade musical do Irão não é muito grande”, nota Negar.

“Os estúdios de gravação são poucos. As pessoas conhecem-se umas às outras porque acabam a gravar no mesmo estúdio. Há um estúdio em Teerão onde a maior parte das bandas ensaia. O proprietário não só apoia e encoraja estas bandas como apresenta os músicos uns aos outros, e assim se vão formando bandas.” O filme de Ghobadi mostra essa cumplicidade na clandestinidade.

“É interessante como as pessoas conseguem contactos para fugir à polícia”, realça Ashkan. “Apesar de o Irão ser visto como um país estruturado e controlado, há muitos conflitos no seu interior.”

“Não é difícil encontrar pessoas – até dentro da Polícia – que são menos rigorosas. Afinal de contas, a música não é um crime. E é bom lembrar que quando existe conflito e contraste em vez de unidade, é sempre mais fácil conseguir escapar.”

“O Irão é um país complicado e isolado”, adianta Negar. “Este isolamento que sentimos torna-se fonte de muitas letras para canções. O Irão está cheio de histórias, e só algumas chegam aos media. Esta nova geração de músicos canta histórias que não vemos na BBC.”

“Muitos artistas são forçados a abandonar os seus sonhos – e o que acontece a um país quando os seus jovens [no Irão quase 70% dos cerca de 70 milhões de habitantes] deixam de sonhar?”, interroga-se Ashkan, que já estava em Londres nas turbulentas eleições presidenciais de Junho.

“Eu vi a esperança nos olhos das pessoas”, adianta, aludindo à mobilização a favor do candidato “derrotado” Mir-Hossein Mousavi.

“Um grande momento de mudança transformou-se no pior pesadelo que podia imaginar. Despertei com a imagem terrível de pessoas a ser espancadas e mortas, e só queria que aquilo parasse.”

“Os jovens merecem oportunidade de viver e ser felizes, não de ser torturados e mortos. Acredito no poder do povo. Somos os donos do nosso destino. A política é um jogo em qualquer parte do mundo. A mim, só me interessa a sociedade e o direito de vivermos em liberdade e em paz.”

Os “dias verdes” de Hana

Ava (na foto), a protagonista de Green Days, perde-se pelas ruas de Teerão, “uma cidade há cem anos em busca de um sorriso, que quase sempre termina em lágrimas”. Depois de cada eleição, “perdemos tudo”

A decepção de Ashkan e Negar é partilhada por Ava, a protagonista de Green Days, de Hana Makhmalbaf, que retrata o desencanto com as promessas não cumpridas por Khatami, nos seus dois mandatos de 1997 a 2005, e a vitória “usurpada” por Ahmadinejad a Mir-Hossein Mousavi nas eleições presidenciais de Junho de 2009.

“Onde fica este lugar cujas portas estão todas fechadas?”, assim começa o documentário de Hana, 21 anos, a filha mais nova de Mohsen Makhmalbaf, o cineasta que foi opositor da monarquia e defensor da teocracia para agora ser um dos seus maiores críticos. “Onde fica este lugar onde as pessoas chamam desesperadamente por Deus?”

Ouvem-se os gritos de Allahu Akbar nos telhados Teerão apinhados de antenas que o regime chama de “paradiabólicas”.

Uma Ava deprimida deixa-se perder pelas ruas de “uma cidade, há cem anos em busca de um sorriso, que quase sempre termina em lágrimas”. No consultório do psiquiatra, ela queixa-se. Depois de cada eleição, “perdemos tudo, só resta uma derrota.”

Desiludida com Khatami – “Por que perdemos? Não foi uma derrota política, foi uma derrota emocional”, – Ava deixa-se seduzir por Mousavi, arquitecto e pintor, o último primeiro-ministro do Irão, um tipo “não perfeito” e “parte do sistema” (zeloso discípulo de Khomeini), que transformou o verde do Islão no verde da esperança.

Ava há-de voltar a sorrir, até saber que “Ahmadinejad fez um golpe de Estado; centenas de pessoas foram mortas; milhares foram feridas; 11 mil foram presas, torturadas e violadas nas cadeias”. E, então, implora: “Não posso mais viver entre sonhos e pesadelos. Tenho medo de pesadelos, doutor.”

De Londres, Ashkan e Negar escrevem: “Nunca imaginámos Teerão com tiros e pneus a arder. Muitos dos nossos amigos saíram à rua para darem a sua opinião e foram castigados. Sentimos tristeza.”

“Choramos os que foram feridos e mortos. Inalámos a dor da perda e dos sonhos estilhaçados. Ainda exalamos esperança e vontade e fé no nosso poder. O nosso sonho? Bem, é o sonho de uma vida melhor. Cada tem a sua definição, mas o que tivemos à nossa frente foi a ideia de um país livre do medo.”

Em Dallas (Texas), Aryo B. Pirouznia, porta-voz do Student Movement Coordination for Democarcy in Iran (SMCDI), organização que há 20 anos atrai jovens dentro e fora do Irão a favor de um regime laico, acha que este sonho está próximo. Numa entrevista, por correio electrónico e telefone, justifica a sua confiança:

“Apesar da censura em todos os domínios, da literatura à moda, já vemos as luzes de um movimento progressista e renascença, que vai ter impacto no Irão e em toda a região. Podemos ter a certeza de que o regime islâmico vai cair e que uma democracia secular será o próximo sistema. Não podemos prever exactamente quando, mas a situação está em constante mudança”.

“Infelizmente”, salienta, “não há um líder corajoso e persistente capaz de acelerar as acções deste movimento social e político progressista – que colocou um milhão de pessoas na rua”.

Antigos estadistas da República Islâmica, como Mousavi, não parecem aptos, por convicção ou medo, a cortar os laços com o seu passado e um pesado legado. Há os que se apresentam, directa ou indirectamente, como potenciais líderes, mas nenhum deles tem a força necessária e o sentimento de dever e sacrifício para dar resposta a milhões de iranianos corajosos.”

Petr Lom e as cartas ao Presidente

Em Letters to the President, documentário de Petr Lom, vê-se Mahmoud Ahmadinejad em digressão pelo país, o que lhe permitiu alargar a sua base de apoio em regiões nunca antes visitadas pelos seus predecessores. “Não é por amor ao regime”. Os seus fiéis apenas “procuravam quem as salvasse da miséria”

O país com que Askan, Negar e Pirouznia sonham não é o de Ahmadinejad – e isso é visível em Letters to the President, documentário de Petr Lom, que nos faz entrar no círculo restrito do homem que queria apressar o retorno do Messias.

É certo que sem fraudes, em 2005 e em 2009, Ahmadinejad não teria chegado ao topo. Mas a primeira causa foi o desânimo dos partidários de Khatami, como Ava, que não foram votar, e deixaram o campo aberto aos ultraconservadores.

“Muitos iranianos chegaram à conclusão de que as duas facções do regime [radicais e pragmáticos] estavam mais interessados em salvar a sua ideologia e poder do que em materializar as aspirações populares, e boicotaram o escrutínio [que resultou na derrota do ‘moderado’ Ayatollah Rafsanjani]”, lamenta Pirouznia.

A abstenção dos jovens, das mulheres e dos intelectuais ajudou Ahmadinejad a consolidar a sua base nas províncias – antes dele, nenhum outro Presidente abandonara o conforto de Teerão para viajar pelo país.

“Não é por amor ao regime”, garante o porta-voz do movimento juvenil, que estas pessoas escrevem “umas dez milhões de cartas” ao Presidente, “incluindo SMS e e-mail, 76% das quais têm resposta”, segundo um responsável. “Elas só procuram quem as salve da miséria”.

Quando Ahmadinejad mandou erguer no centro de Teerão a foto de uma bombista suicida palestiniana com a legenda “Amo os meus filhos, mas amo mais o martírio”, os iranianos desventurados e analfabetos que deixaram as suas crianças explodir nos campos minados da guerra Irão-Iraque sentem que travam a mesma batalha, “do bem contra o mal”.

[Em 2013, Ahmadinejad saiu de cena, após as eleições presidenciais que deram a vitória a um “pragmático”, Hassan Rouhani, aparentemente, determinado a pôr fim ao isolamento do país, aceitando compromissos, sobretudo no que toca ao programa nuclear, que permitam o fim das sanções internacionais.]

Tamadon e os loucos por mártires

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Mohammad Pourkarim (em cima) e o veterano de guerra Nader Malek-kandi (aqui) são os guias que Mehran Tamadon usou em Bassidji, para entender a cultura do shahadat ou martírio. "Somos loucos por mártires!", diz uma voz no documentário, no qual o cineasta iraniano a viver em França, ateu e filho de um opositor comunista do Xá, consegue extraordinários diálogos com os representantes de dois pilares do regime - a milícia Bassij (Mobilização) e a força paramilitar Pasdaran (Guardas da Revolução). @DR (Direitos Reservados |All Rights Reserved)

Mohammad Pourkarim (foto 1) e o veterano de guerra Nader Malek-kandi (foto 2) são os guias que Mehran Tamadon usou para entender a cultura do shahadat ou martírio. “Somos loucos por mártires!”, diz uma voz no documentário, no qual o cineasta iraniano a viver em França, ateu e filho de um opositor comunista do Xá, consegue extraordinários diálogos com os representantes de dois pilares do regime – a milícia Basij (Mobilização) e a força paramilitar Pasdaran (Guardas da Revolução)

Os eleitores de Ahmadinejad não são Ashkan, Negar ou Pirouznia. São o jovem miliciano, Mohammad Pourkarim, e o veterano de guerra, Nader Malek-kandi, os guias que Mehran Tamadon usou em Bassidji, para entender a cultura do shahadat ou martírio.

“Somos loucos por mártires!”, diz uma voz no documentário, no qual o cineasta iraniano a viver em França, ateu e filho de um opositor comunista do Xá, consegue extraordinários diálogos com os representantes de dois pilares do regime – a milícia Basij (mobilização) e a força paramilitar Pasdaran (Guardas da Revolução).

Os vigilantes Mohammad e Nader protegem a teocracia porque dela são totalmente dependentes. Tal como os desesperados que escrevem cartas ao Presidente, pedindo empregos ou empréstimos, água potável ou estradas asfaltadas.

Mohammad e Nader não têm sede de arte, como Ashkan e Negar. Têm sede de vingança e por isso foram usados como instrumentos de repressão nos tumultos estudantis de 1999 e nos protestos dos “dias verdes” de Junho.

Há outro caminho que não a religião? Depois de 30 anos de revolução, o que é preciso fazer para que os iranianos deixem de dizer que são vítimas? As perguntas de Tamadon não têm resposta.

Muitas formas de arte na República Islâmica do Irão continuam censuradas
© The Washington Post

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 16 de Outubro de 2009 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on October 16, 2009

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