O primeiro-ministro de Israel excluiu a OLP da Conferência de Madrid e impôs uma delegação jordano-palesiniana como condição para estar presente no seu primeiro frente-a-frente com líderes árabes – sob pressão dos EUA. Arafat não gostou, mesmo que seja ele a ditar as regras aos que foram representar o seu povo. (Ler mais | Read more…)

Yitzhak Shamir e o presidente dos EUA, George H.W. Bush, que forçou a sua presença na Conferência de Madrid, em 1991
© The Tower
As palavras foram cuidadosamente ponderadas e pronunciadas. “O Sr. Não [Mr. NO] está deslocado no espaço e no tempo, com os seus antigos ̔ slogans̕ e velhos sonhos”, disse, com toda a ênfase. Yasser Arafat, o líder da OLP, reagindo ao discurso do primeiro-ministro israelita, Yitzhak Shamir [1915-2012], na Conferência de Madrid [em 1991].
Shamir “continua a ser obstinado […], insistindo em não aceitar a nova situação, após o fim da terceira guerra mundial” (referência à guerra do Golfo), disse Arafat num encontro em Tunes com um grupo de jornalistas de vários diários europeus (eu incluída), numa iniciativa das Nações Unidas.
“Ele [Shamir] continua a falar a velha linguagem, continua a falar de uma grande Israel”, queixou-se Arafat, sem esconder o profundo antagonismo entre os dois líderes.
Envergando um uniforme militar, com o tradicional kaffiyeh, tapando a sua calvície e com uma mão parcialmente enrolada numa ligadura elástica, Arafat revelou-se um verdadeiro actor, elevando ou baixando a voz para dar mais realce às suas palavras, cruzando os braços sobre a mesa, mexendo-se irrequietamente na cadeira, apontando com o indicador como um advogado de acusação.
Também fixava o interlocutor profundamente nos olhos, como que pedindo compreensão. O timbre da sua voz ganhou um novo ímpeto quando se referiu a Jerusalém, negando aos judeus e a Israel o direito exclusivo à cidade.

O irredutível primeiro-ministro Yitzhak Shamir, na inauguração da Conferência de Madrid, em 1991, com Benjamin Netanyahu, que era, na altura, o seu porta-voz
© AFP | Getty Images | Foreign Policy
Jerusalém deriva da expressão Olsalim, que significa a cidade de Salim, um dos reis de Canaan, que a construiu, explicou Arafat. Para que as suas palavras não fossem mal interpretadas, Arafat recorreu várias vezes aos seus conselheiros, que enchiam a sala, onde uma das paredes estava totalmente coberta com uma fotografia da Cúpula do Rochedo, em Jerusalém.
“Shamir repetiu antigas e grandes mentiras e o velho e tonto slogan da ‘paz em troca da paz’”, observou Arafat. “Por que é que eles (israelitas) foram a Madrid se o primeiro item da iniciativa do Presidente [George H. W.] Bush, que nós apreciámos, foi ̔ território em troca da paz̕ ? […] Lamento dizer, mas ele [Shamir] é o sr. ̔ Não ̕ , não é o primeiro-ministro de Israel.”
O que mais indignou Arafat foram as condições que Israel impôs à representação palestiniana à conferência. “[Norman] Shwarzkopf não escolheu os iraquianos com quem falou depois da guerra (…). No processo de paz do Camboja, ninguém ditou os nomes das delegações. A excepção é Shamir em relação aos palestinianos.”
Durante quase duas horas de conversa, Arafat mostrou-se algumas vezes conciliatório em relação aos EUA, tendo adoptado um tom invulgarmente duro em relação à Europa. “Lamento dizer-vos mas vocês, europeus, mimaram e estragaram o vosso naughty baby̕ Israel.
A imutável imagem de Mr. Palestine

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Se o seu discurso se mantém praticamente imutável, a imagem de Arafat também não se alterou. O líder da OLP recebeu os convidados em uniforme militar, de pistola no coldre e o kaffiyeh a cobrir a cabeça calva. Apesar de ter a mão direita enrolada numa ligadura elástica, cumprimentou com firmeza todos os jornalistas que, em fila, o saudavam como a um chefe de Estado.
“Muito prazer, senhor Presidente”. É assim que ele gosta e exige ser tratado, excepto entre os amigos. Para esses é apenas Abu Ammar, o nome de guerra.
Como uma criança irrequieta, mexe-se constantemente na cadeira, vigilante; a sua face passa facilmente de uma expressão de raiva para um sorriso amplo, com os olhos salientes e penetrantes.
Adora ser tratado como uma “estrela” e prontificou-se para tirar fotografias ao lado dos jornalistas que quisessem ter o “privilégio” de posar ao lado do “Mr. Palestine” (Sr. Palestina), como a revista Playboy em tempos o intitulou.
A segurança que o rodeia é indescritível. O encontro estava marcado para o dia 30 [de Outubro de 1991] às 19h00. Depois foi adiado para a mesma noite a uma hora a determinar. Uma inesperada viagem de Arafat a Marrocos transferiu o rendez vous para o dia seguinte. Às 19h30 todos estavam a postos, mas só às 21h00 chegou a confirmação.
Dois enviados de Arafat num Mercedes conduziram o autocarro a uma zona residencial a dois minutos de distância do hotel. O trânsito estava cortado na rua.
À porta de uma modesta vivenda com um gradeamento coberto por um taipal plástico verde, aguardavam dezenas de homens à paisana, uns exibindo metralhadoras, outros disfarçando mal as suas armas debaixo dos casacos.
Todo o perímetro da casa estava rodeado de carros de luxo. Apesar dos vidros fumados era possível ver que estavam ocupados, presumivelmente por agentes de segurança. Vários guarda-costas revistaram as roupas e sacos antes de permitirem o acesso aos aposentos de Arafat.
Era uma casa branca, com um estilo árabe pouco definido, um anexo construído à pressa, uma coluna de cantaria trabalhada no portal e janelas com estores de madeira verde no primeiro andar. Na garagem, vários Mercedes estavam estacionados.
A decoração interior era totalmente descuidada, revelando falta de conservação. Por todo o lado se viam fotos de Arafat. A bandeira da Palestina estava omnipresente. E por detrás da secretária de Arafat uma fotografia da Cúpula do Rochedo, em Jerusalém.

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Estes dois artigos, agora revistos e actualizados, foram publicados originalmente no jornal PÚBLICO em 1 e 3 de Novembro 1991 | These two articles, now revised and updated, were originally published in the newspaper PÚBLICO on November 1 and 3, 1991