Desde o ataque do Hamas que, em 7 de Novembro, causou cerca de 1200 mortos no Sul de Israel e a subsequente guerra que, em apenas um mês, matou mais de 10 mil palestinianos* e desalojou metade dos 2,3 milhões de habitantes da Faixa de Gaza, só este conflito parece merecer a compaixão da comunidade internacional, queixam-se as organizações de direitos humanos. Mas há, no imediato, dois outros dramas humanos que precisam de atenção – Sudão e Afeganistão. (Ler mais | Read more…)

© Zohra Bensemra | Reuters | The New Humanitarian
Num país com três vezes mais habitantes (45,66 milhões) do que Israel e a Palestina juntos, a guerra que “irrompeu sem aviso” entre o exército e uma força paramilitar chefiados por dois generais rivais no Sudão “transformou em cemitérios lares outrora pacíficos”, lamenta a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Os combates são cada vez mais intensos e impiedosos, mas “o mundo está escandalosamente silencioso” perante uma “crise inimaginável” – a maior em termos de deslocados internos: mais de 7,1 milhões de pessoas.
“A situação é catastrófica”, confirma a Organização Internacional para as Migrações (OIM). Desde abril, quando os chefes do exército nacional, Abdel Fattah al-Burhan, e das Forças de Apoio Rápido (RSF), Mohamed Hamdan “Hemedti” Dagalo, levaram para as ruas de Cartum a sua sôfrega luta pelo poder, pelo menos 6 milhões de sudaneses foram forçados a sair de casa – 3 milhões dos quais originários da capital, o epicentro do conflito.
Além dos deslocados internos, mais de 1,4 milhões refugiaram-se em países vizinhos, alguns deles igualmente vulneráveis: Chade (que acolheu 490 mil – 8000 dos quais em apenas uma semana, em Novembro), Egipto, Sudão do Sul, Etiópia, República Centro Africana e Líbia, refere a OIM. A esmagadora maioria dos refugiados (90% no caso dos que se abrigaram na República Centro Africana) são mulheres e crianças.

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A província do Darfur – com a área da França e 11 milhões de habitantes – é a região que inspira os maiores receios das ONG. Em Novembro, as RSF, herdeiras da milícia Janjaweed (“demónios a cavalo”), responsabilizada pelo genocídio de 2003, avançavam pelo norte do território, onde já vivem centenas de milhares de deslocados, depois de terem conquistado o sul, o oeste e o centro.
“É vergonhoso que as atrocidades cometidas há 20 anos se estejam a repetir hoje”, perante a indiferença de líderes e media mundiais, criticou em comunicado o director de relações externas da ACNUR, Dominique Hyde.
Assim que as RSF entraram em Nyala (onde se apoderaram de uma base militar), Zalingei e El Geneina, “as condições de segurança deterioraram-se em El Fasher, capital do estado do Darfur Norte”, alertou a plataforma Sudan Transparency and Policy Tracker (STPT).

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“El Fasher, com mais de um milhão de habitantes, tem os dois principais campos de deslocados do estado: Al-Salam (Abuja), no nordeste da cidade, com mais de 200 mil pessoas, e Abu Shouk (Naivasha), com mais de 300 mil.” Os combates mais recentes contribuíram para que 85% dos habitantes dos bairros no norte e nordeste e dos campos de Abuja e Naivasha fugissem para sul, ou para a Líbia, em busca de protecção. “
Centenas de famílias sem recursos para abandonar El Fasher foram recolher-se em sete escolas onde já se encontravam deslocados de vagas anteriores, provenientes das regiões do Darfur Ocidental, Darfur Central, Darfur Sul, Kutum e Tawila, adianta a STPT. Shaqra, Mellit e outras povoações vizinhas estão no limite da capacidade para acolher novos deslocados. A maioria vive em tendas em condições degradantes, sem água nem cuidados médicos.
“O objetivo das RSF é derrubar a 6ª Divisão de Infantaria em El Fasher para cimentar o controlo de todo o Darfur e assim reforçar a sua posição negocial”, explica a STPT. Se tal acontecer, “será uma catástrofe”. El Fasher é “uma ponte que liga os estados do Darfur aos restantes estados do Sudão, e tem sido usada como centro para distribuição de alimentos, medicamentos e combustível”.

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Tudo isto será posto em causa se as RSF ocuparem a cidade, porque esta força “não tem sido capaz de governar os territórios e populações sob seu controlo militar”. Em Nyala, Zalingei, El Geneina e Ardamata, os mercenários de Hemedti “têm sistematicamente semeado o caos, com pilhagens e assassínios em massa de civis”.
El Fasher é também a base das milícias Zaghawa, um grupo africano não-árabe que há quase duas décadas se insurge contra um negligente governo central. “A ameaça de confronto entre as RSF e as Zaghawa poderá ressuscitar a guerra civil que há duas décadas devastou a região, quando os milicianos árabes Janjaweed queimaram aldeias, mataram civis e usaram violações como armas de guerra”, destacou o jornal The Washington Post.
“Estamos sempre a dizer que a situação é medonha e sombria, mas, francamente, já nos faltam palavras para descrever o horror”, queixou-se Clementine Nkweta-Salami, coordenadora humanitária da ONU para o Sudão. “Continuamos a receber relatos chocantes e terríveis de violência sexual, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias e graves violações dos direitos das crianças. Isto é quase maldade pura.”

© Wakil Kohsar | AFP | Asharq Al-Awsat
No dia 1 de Novembro, o Paquistão começou a expulsar todos os estrangeiros “sem documentos legais”, entre eles 1,7 milhões de imigrantes e refugiados afegãos, mas também requerentes de asilo das minorias rohingya, da Birmânia, e uigur, da província chinesa de Xinjiang, obrigados a retornar a países onde enfrentarão mais ameaças de morte do que perspectivas de vida.
“Imperativos de segurança”, foi assim que a expulsão em massa dos afegãos foi justificada pelo ministro do Interior de Islamabad, Sarfraz Bugti, lembrando que 14 dos 24 grandes ataques terroristas e atentados suicidas ocorridos este ano no Paquistão foram levados a cabo por cidadãos do país vizinho a noroeste, sobretudo combatentes da organização Tehrik-i-Taliban Pakistan (TTP) conhecidos como “talibãs paquistaneses”, mas também da Al-Qaeda e do Daesh.
Segundo a ONU, 1,3 milhões de afegãos estão registados como refugiados ou apátridas no Paquistão, e 880 mil têm estatuto legal para permanecer no país. Estima também que sejam mais de 2 milhões os que não têm documentos oficiais – 600 mil dos quais terão chegado depois do regresso dos talibãs ao poder, em 2021.

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Várias agências internacionais advertiram para o agravamento da “maior crise humana do mundo”. No Afeganistão, ainda em choque depois de quatro mortíferos terramotos e dezenas de réplicas entre 7 e 17 de Outubro, com a economia em colapso e um regime pária, 29,3 milhões de pessoas, entre as quais 3,3 milhões de deslocados internos e metade das quais crianças, não sobrevivem sem ajuda, avisaram responsáveis das Nações Unidas.
Muitas pessoas têm sido “detidas, espancadas e vítimas de extorsão” desde que foi anunciado o repatriamento, denunciou a Human Rights Watch (HRW), recordando que muitos dos que serão obrigados a regressar à pátria ficarão expostos a “riscos significativos de segurança”.
O jornalista afegão Zahid Bahand, que deixou tudo para escapar ao actual governo em Cabul, confessou à CNN que está a ser “assediado pelas autoridades paquistanesas”, mas que resiste. “Se me deportarem, serei morto. Fui preso pelos talibs durante três meses. Não há no Afeganistão lugar para mim.”

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Em Peshawar, no noroeste do Paquistão, uma jovem identificada como Sadia contou à BBC que fugiu do Afeganistão há dois anos, para ter a oportunidade de seguir um curso superior, algo impossível porque os taliban proibiram raparigas e mulheres de estudar e trabalhar. “Eu queria continuar aqui a minha educação; se for obrigada a partir, não conseguirei formar-me no meu país. Estou assustada com o meu futuro.”
Quem está, provavelmente, a dirigir a política de expulsão, numa altura em que o país prepara as eleições de 8 de fevereiro, “são os militares, que exercem imensa influência sobre o governo interino” e a quem interessa que seja este “a arcar com as críticas públicas”, comentou, na revista Foreign Policy, o director para a Ásia do Sul do Wilson Center, Michael Kugelman.
Numa entrevista ao serviço pashtu (principal língua do Afeganistão] da BBC, Muhammad Yaqoob, ministro da Defesa dos taliban, fez um pedido aos governantes paquistaneses: “Abstenham-se de cometer actos de crueldade contra os afegãos e de confiscar os seus bens e propriedades.” Mas deixou também uma advertência: “Como semeardes, assim colhereis.

© Fayaz Aziz | Reuters
*Em Fevereiro de 2024, o número de mortos na Faixa de Gaza, em consequência de uma guerra que alguns definem como “um genocídio”, aproximava-se já dos 30.000, dos quais 70% são mulheres e crianças, segundo agências das Nações Unidas.
Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Dezembro de 2023 | This article, now updated was originally published in the December 2023 edition of the Portuguese news magazine ALÉM-MAR.