Em apenas três anos, entre Agosto de 2020 e Agosto de 2023, nove golpes de Estado colocaram no poder líderes militares em 7 países do continente. Falharam 8 tentativas, designadamente na Guiné-Bissau e em São Tomé e Príncipe. É uma “epidemia”, alertou o secretário-geral da ONU, António Guterres. E há risco de contágio, porque não há respostas às aspirações e necessidades das populações. (Ler mais | Read more…)

Seis décadas depois do primeiro golpe** de Estado na África Ocidental – no Togo, em 1963 –, quase 148 milhões de pessoas estão agora sujeitas a regimes militares, de costa a costa no continente.
Nos últimos três anos, registaram-se 9 golpes em 7 países: Mali (Agosto de 2020 e Maio de 2021); Chade (Abril de 2021); Guiné-Conacri (Setembro de 2021); Sudão (Outubro de 2021 e Abril de 2023); Burkina Faso (Janeiro e Setembro de 2022); Níger (Julho de 2023); Gabão (Agosto de 2023).
No mesmo período, fracassaram oito tentativas: em Junho de 2021, na República Centro Africana; em Março de 2021, no Níger: em Fevereiro de 2022, na Guiné-Bissau; em Maio de 2022, no Mali; em Novembro de 2022, em São Tomé e Príncipe; em Dezembro de 2022, na Gâmbia; em Julho de 2023; na Serra Leoa; em Setembro de 2023, no Burkina Faso.
Entre 1950 e 2022, de um total de 486 golpes, 242 com sucesso, África foi o continente com o número mais elevado: 216, metade dos quais (106) resultaram, segundo dados apresentados no Journal of Peace Research pelos investigadores Jonathan M. Powell (University of Central Florida) e Clayton Thyne (Kentucky University).

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Em 45 dos 54 países do continente houve pelo menos uma tentativa de golpe desde que se iniciou a descolonização de vários Estados africanos. As exceções são raras: África do Sul, Botswana, Cabo Verde, Malawi, Maurícias, Namíbia, Tanzânia.
O Sudão continua no topo da lista – 18 golpes desde a independência, em 1955, incluindo os que derrubaram o presidente, Omar al-Bashir, em Abril de 2019 (após uma revolução popular contra 30 anos de ditadura) e o primeiro-ministro civil, Abdalla Hamdok, em Outubro de 2021.
Mas também o que desencadeou uma guerra civil, em Abril de 2023, travada por dois generais inimigos, o chefe do grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF, antiga milícia Janjaweed) e o comandante do Exército Nacional.

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Em 2021, depois de um golpe na Birmânia/Myanmar e quatro em África, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, alertou para “uma epidemia” causada por “um ambiente em que alguns líderes militares sentem que têm impunidade total” e “podem fazer o que lhes apetece porque nada lhes acontece”.
No entanto, vinte anos antes, lembra Nic Cheeseman, professor de Democracia na Universidade de Birmingham, no site The African Report, acreditava-se que governantes civis e um sistema multipartidário seriam o futuro.
Eram “dias de esperança”, sobretudo depois da vontade expressa na Declaração de Lomé (2000) de “consolidar o processo de democratização” e depois da promessa da União Africana e da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) de que rejeitariam mudanças de governo inconstitucionais.
Os investigadores Powell e Thyne também notaram que, embora os golpes militares fossem “regulares e consistentes” em África, com “uma média anual de quatro” entre 1960 e 2000, a realidade é que na década anterior a 2021 “houve, anualmente, menos de um, em média”.

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A partir de 2017 – ano em que as forças armadas do Zimbabwe puseram fim a quase 4 décadas de monopólio de poder de Robert Mugabe -, nenhum outro continente tem registado tantos golpes como África, ainda abalada por “séculos de colonialismo” e “batalhas de influência por procuração do tempo da Guerra Fria”, como escreveu Ellen Ioanes no site VOX.
A que se deve então a nova espiral, sobretudo na África Ocidental (Mali, Níger, Guiné-Conacri, Burkina Faso), mas também na África Central (Chade e Gabão) e África Oriental (Sudão e Zimbabwe)? É o “beijo da morte” na Françafrique? Aclamadas na rua, as forças armadas são a solução – há “golpes bons”? Os Africanos perderam a fé na democracia?
Vários elementos podem explicar uma transferência de poder não democrática, mas o que permite prever onde os golpes irão ocorrer é o precedente. “Se já houve uma tentativa nos últimos três anos, haverá probabilidade, entre 25% e 40%, de haver um golpe no ano corrente”, explica o investigador Jonathan M. Powell. E a verdade é que em quase todos os países onde se registaram golpes recentemente já antes tinha havido ingerência militar.

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“Cada golpe responde a uma agenda local”, afirma o analista El Hadj Souleymane Gassama, investigador no Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, em Paris, citado pelo diário L’Echo, de Bruxelas. O Gabão, por exemplo, “não encaixa no padrão” dos golpes recentes no epicentro que é a África Ocidental, diz a jornalista Ellen Ioanes e concorda Gassama.
O vizinho de São Tomé e Príncipe pelo Golfo da Guiné não enfrenta a ameaça do terrorismo jihadista que é “uma praga” no Sahel, por isso, o putsch da autoria de um general da guarda presidencial “não pode justificar-se por motivos de segurança”.
Por outro lado, o líder deposto, Ali Bongo Ondimba, faz parte de uma “dinastia de ditadores” no poder há 55 anos, o que não acontece no Burkina Faso, no Mali ou no Níger que, nas últimas 4 décadas, tiveram governos civis.
Para Jacques Pilet, colunista e fundador do jornal digital suíço Bon pour la tête, há um “ponto em comum” nos vários golpes desde 2021: “descontentamento com presidentes eleitos, mais ou menos democraticamente”, desprezados como “incompetentes e corruptos, incapazes de assegurar condições de vida dignas às populações” num contexto de crise económica agravada pela Covid-19 e pelos efeitos da invasão russa da Ucrânia.

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No Gabão, que tem o terceiro PIB per capita mais elevado do continente, a família do ex-presidente é o maior beneficiário dos recursos naturais do país (petróleo, manganês, gás natural, ferro, madeira). Em 2009, a riqueza dos Bongo era estimada em 460 milhões de dólares.
Já o povo – um em cada 3 dos 2,3 milhões de habitantes – vive abaixo do limiar da pobreza, sem infra-estruturas de saúde e educação. Em 2022, a taxa de desemprego chegou aos 30%. Cerca de metade dos gaboneses não tem água potável e 70% dos que vivem nas áreas rurais não tem electricidade.
No Mali, infectado pelo vazio de poder que se seguiu à queda de Muammar Kadhafi na Líbia, e subsequente influxo de armas e forças extremistas, foram alegações de que o presidente, Bah N’Daw, estaria a manipular eleições locais e gigantescas manifestações de protesto.
Estas foram, supostamente, organizadas por partidos da oposição que, em 2021, terão levado o chefe do exército e vice-presidente, Assimi Goïta, a derrubar o homem que, no ano anterior, elevara a chefe do Estado, depois de ter destituído, noutro golpe, o presidente Ibrahim Boubacar Keïta.

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O Burkina Faso, antigo Alto Volta, é o país que regista o maior número de golpes militares concretizados – em 1966, 1974, 1980, 1983 (ascensão do herói pan-africanista Thomas Sankara), 1987 (destituição e assassínio de Sankara), 2014 (queda de Blaise Compaoré após 27 anos na presidência) e mais dois em 2022.
O primeiro afastou, em Janeiro, o presidente, civil e duas vezes eleito, Rock Kaboré; o segundo derrubou, em Setembro, quem o fez cair, o coronel Paul-Henri Damiba, por sua vez destituído pelo capitão Ibrahim Traoré.
As razões invocadas pelos oficiais golpistas: a incapacidade de Kaboré e Damiba fazerem frente a uma escalada de violência de grupos ligados à Al-Qaeda e ao Daesh, que, desde 2015, causou milhares de mortos e dois milhões de deslocados.

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No Níger, a justificação para uma junta militar exonerar e deter, em Julho, o presidente, Mohamed Bazoum, – eleito na primeira transição democrática e pacífica de poder desde a independência em 1960, um dos principais aliados da França e dos EUA na luta contra o terrorismo no Sahel – terá sido um suposto plano para reformar o exército, punir o ministro da Defesa por desvio de fundos e afastar do comando da guarda presidencial o general Abdourahamane Tchiani, o golpista que lidera agora um Conselho Nacional para a Salvaguarda da Pátria.
Ou seja, o principal motivo para o golpe de Julho não terá sido “reforçar a soberania nigerina” nem ajudar os mais necessitados (1 em cada 5 dos 24,4 milhões de habitantes vive em pobreza extrema num país que é o sétimo maior produtor de urânio do mundo).
A principal razão foi “proteger os privilégios de uma elite militar”, na opinião de Nic Cheeseman e Leonard Mbulle-Nziege, autores de um ensaio publicado pela BBC.

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No Chade, logo após a morte do presidente, Idriss Déby, em 2021, em combate com forças rebeldes, os militares apressaram-se a colocar no poder o filho do defunto, um general de quatro estrelas e 37 anos, porque “o povo não se entende” e a situação nas fronteiras com a Líbia e o Sudão é explosiva. Como “presidente interino”, Mahamat Idris Déby é agora o líder de um Conselho Militar de Transição que, ao fim de 18 meses, já deveria ter cessado funções.
Na Guiné-Conacri, vizinha da Guiné-Bissau, o coronel Mamady Doumbouya invocou “corrupção endémica, má gestão e pobreza” como justificação para, em 2021, derrubar o presidente, Alpha Condé, de 85 anos – que, em 2010, se tornara o primeiro presidente eleito da história do país. Foi reeleito em 2015 e, graças a um referendo constitucional, novamente em 2020, apesar de protestos da oposição, violentamente reprimidos.
“Se o povo está esmagado pelas elites, cabe ao exército oferecer-lhe a liberdade”, declarou Doumbouya, citando Jerry Rawlings, ex-presidente do Gana, protagonista de 2 dos 10 golpes registados neste Estado da África Ocidental, entre 1966 e 1984.

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Para alguns gaboneses, a queda do presidente, em 30 de Agosto, foi “uma libertação”, não um golpe. Ali Bongo sucedera ao pai, Omar Bongo, quando este morreu em 2009, depois de quase 42 anos na liderança.
Aos 64 de idade e debilitado por um acidente vascular cerebral, o filho proclamara-se vencedor de uma eleição que lhe daria um terceiro mandato quinquenal (uma fraude, segundo a oposição), quando foi destituído pelo primo Brice Clotaire Oligui Nguema, um general treinado em Marrocos, ex-chefe da guarda presidencial e agora “interinamente” chefe do Estado.
Após alguns dias sob detenção domiciliária, o dirigente caído em desgraça foi autorizado a deixar o país. A mulher, a franco-gabonesa Sylvia Bongo Ondimba, diz que está “refém” em casa. O filho mais velho, vários membros do governo e dois ex-ministros foram presos sob acusações de corrupção e outros delitos.

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Estes golpes recentes têm duas características – os líderes destituídos não têm sido mortos, como aconteceu no passado, a Thomas Sankara, no Burkina Faso, ou a João Bernardo “Nino” Vieira, na Guiné-Bissau. E, num continente onde 40% da população tem menos de 15 anos, os líderes golpistas são mais jovens do que gerontocracia que derrubam. Aos 35 anos, o burkinabé Ibrahim Traoré é hoje o mais jovem chefe de Estado do mundo.
Uma terceira característica é que nas ruas de Libreville, Niamey, Ouagadougou ou Bamako os cidadãos gritam palavras de ordem contra a França, a antiga potência colonial à qual atribuem a culpa por todos os males. Embaixadores e soldados franceses receberam ordem para abandonar o Burkina Faso, o Mali e o Níger, depois de acordos militares bilaterais terem sido revogados.
Se mantém bases no Chade, na Costa do Marfim, no Senegal e no Gabão (um país ainda francófilo), a realidade é que a França já não é a “potência favorita dos africanos francófonos”, agora suplantada pela China (como parceiro comercial) e pela Rússia (em matéria de segurança), refere Ken Opalo, autor de Legislative Development in Africa: Politics and Postcolonial Legacies, no site Le Grand Continent, num artigo intitulado “A morte lenta da Françafrique”.

© Jeune Afrique
A “France-Afrique” foi um “neologismo positivo” inventado em 1955 pelo primeiro presidente da Costa do Marfim, Félix Houphouët-Boigny, para qualificar o desejo de alguns líderes africanos manterem relações estreitas e privilegiadas com Paris. Ganhou, porém, um sentido pejorativo, a partir de 1998, quando o economista François-Xavier Verschave publicou o livro La Françafrique: le plus long scandale de la République.
Aqui denuncia a política externa, ambígua e opaca que permitiu a Paris interferir nos assuntos internos das suas antigas colónias, por exemplo, enviando mercenários para salvar ditadores ou aceitando que ditadores financiassem partidos políticos e branqueassem capitais em França.
“A onda de emoção anti-francesa é espontânea, caótica, cheia de ilusões”, comentou o jornalista suíço Jacques Pilet. “Mas há factos objectivos que exigem uma resposta se a França quiser salvar a honra do convento. Por exemplo, o franco CFA”, cada vez mais contestado por muitos africanos como “a última divisa colonial.

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“Os fundos dos 14 países que utilizam esta moeda, criada após a independência, são confiados até 50% (já foram 75%) ao Banque de France, que os investe, distribui e gere como bem quer.” Isto até pode ser “uma mais-valia” para os bancos africanos aderentes, que “evitam flutuações excessivas”, mas é sobretudo “uma perda de soberania que não pode durar mais tempo”.
“Há ainda outra batata quente: a distribuição das riquezas do subsolo e dos produtos agrícolas exportados”, adianta Pilet, especificando o caso da empresa francesa Orano que explora urânio no Níger, um Estado que “recebe apenas 5,5% da receitas e enfrenta problemas alarmantes de poluição”.
A Costa do Marfim é outro escândalo: é o maior produtor mundial de cacau, mas o processamento do produto, “infinitamente mais lucrativo do que o cultivo”, é feito na Europa, o que contribui para que metade da população viva abaixo do limiar da pobreza. “Sem corrigir estas injustiças, o futuro social e político parece sombrio.”

© Finbarr O’Reilly | The New York Times
Como se chegou aqui? “É uma longa história que remonta à colonização e à descolonização – e há muita culpa para repartir”, analisa Michael Shurkin, no site POLITICO. “As elites de África e o seus falhanços são um factor, porque a opinião pública as associa à França.”
“Também podemos apontar o dedo à pobreza do populismo e das ideologias políticas africanas, assim como à emergência de uma nova geração frustrada com o statu quo que, a seus olhos, é responsabilidade da França”, acrescenta o investigador no Africa Center do think-tank Atlantic Council, em Washington..
“Temos ainda de incluir os erros estratégicos cometidos por líderes franceses [do conservador Valery Giscard D’Estaing, Monsieur Afrique, ao socialista François Hollande], desde 1960 até ao presente, assim como os laços políticos e económicos que, indiscutivelmente, prejudicaram o desenvolvimento das nações africanas.”

© Thomas Coex | AFP | Getty Images | The New York Times
Uma retirada de África “irá enfraquecer a posição global da França”, admite Shurkin, mas a França “tem outras prioridades e interesses – vitais na Europa e secundários no Indo-pacífico, onde já mantém a segunda maior Zona Económica Exclusiva do mundo, graças aos seus territórios ultramarinos”.
O comércio com o Indo-Pacífico “representa um terço das relações comerciais da França fora da União Europa e cresce; com África, está a encolher – o Sahel nem sequer aparece nas estatísticas comerciais francesas”.
A maioria dos golpes “não serve para traçar uma linha na areia nem augura um novo período de estabilidade e prosperidade”, esclarece Nic Cheeseman, no site Africa Report. Nos países onde houve intervenções militares foi preciso esperar “muito tempo” até ser restaurado o Estado de direito e os líderes militares mostraram-se quase sempre “egoístas, irresponsáveis e corruptos como os regimes que substituíram”.

© Leger Serge Kokpakpa | Reuters | The Wall Street Journal
Isto “não quer isto dizer que os golpes nunca criam oportunidades para um governo mais eficaz”, ressalta Cheeseman, que louva o papel de golpistas como o coronel Amadou Toumani Touré, que derrubou um ditador quase vitalício, Moussa Traoré, em 1991, no Mali.
No entanto, mesmo este golpe, que, numa breve transição, “abriu caminho a eleições multipartidárias” e ofereceu “as maiores liberdades cívicas no continente”, acabou por falhar “porque a ditadura foi derrubada pelo exército e não por uma revolução liderada por civis – a democracia maliana tinha bases frágeis e o seu colapso era inevitável”.
As promessas dos golpistas também têm sido vãs. Os soldados do Mali, apoiados por cerca de 1000 mercenários do grupo Wagner, substituíram os da França, com a garantia de que só eles conseguiriam travar a insurgência islamista. Mas várias ONG acusam-nos de cometerem atrocidades que fizeram aumentar o número de vítimas civis. No Burkina Faso, os ataques que antes se limitavam ao Norte foram-se aproximando da capital, Ouagadougou.

© Pankaj Nangia | Associated Press | The New York Times
No Zimbabwe, a intervenção militar que destronou Robert Mugabe foi, de início, celebrada nas ruas, mas rapidamente os militares começaram a governar como o nonagenário ditador (1924-2019), reprimindo manifestantes que exigem eleições livres e mais liberdade.
O sucessor apoiado pelo exército, Emmerson Mnangagwa, do partido ZANU-PF, ex-ministro da Defesa, ex-chefe dos serviços secretos e ex-vice-presidente, foi reeleito presidente, em Agosto, graças a “uma gigantesca fraude”, critica a oposição”.
Agora, é acusado de nepotismo por ter nomeado para vice-ministro das Finanças um dos filhos e para vice-ministro do turismo um sobrinho, uma semana depois de conferir à mulher um doutoramento honoris causa.

© gisreportsonline.com
Conclui Basedau Matthias, director do GIGA Institute for African Affairs, em Hamburgo (Alemanha): “Os oficiais que, inicialmente, clamam ser a ‘salvação’, costumam apurar o gosto pelo poder assim que o conquistam. Isso faz-se quase sempre acompanhar de enriquecimento pessoal e violações dos direitos humanos”.
A solução, sugere, passa por “profissionalizar as forças armadas, colocá-las sob um controlo civil estável e afastá-las da política”, mas isso exige que a França e outros países europeus “apoiem governos responsáveis e não fixem objectivos geopolíticos de curto prazo, como criar zonas de influência, seja qual for o carácter dos regimes”.
Em vez de “cair na armadilha de disputar África com a Rússia e a China”, recomenda Matthias,“a melhor opção”, para a Europa e os EUA, é apoiar organizações regionais, como a União Africana e a CEDEAO, para que estas não legitimem líderes golpistas nem revisões constitucionais ilegais que perpetuam o poder de líderes gananciosos.

© EPA |BBC
É tentador interpretar os golpes recentes como um sinal de que a democracia está a morrer em África, mas é um erro, garantem Nic Cheeseman e Leonard Mbulle-Nziege. “Mesmo nos países onde se instalaram regimes militares, uma maioria de cidadãos deseja viver em democracia e rejeita o autoritarismo”.
E mais: “Apesar da frustração crescente com o modo como a política multipartidária é desempenhada, as democracias continuam a gerar mais crescimento económico e a oferecer mais serviços públicos”, segundo um estudo da Cornell University, em Nova Iorque, citado pelos dois analistas.
“África pode obter e obtém dividendos democráticos – o problema é quando líderes supostamente democráticos usam estratégias não democráticas para se manter no poder contra a vontade das suas populações”, acreditam Cheeseman e Mbulle-Nziege. “Este é o ponto crítico.”

© Gregade | Fair Observer
Exemplos: Em 2020, na Guiné-Conacri, o ex-presidente Alpha Condé modificou a Constituição em 2020, para concorrer a um terceiro mandato. “Foi uma estratégia impopular, porque nem o referendo constitucional que ele impôs nem a subsequente eleição presidencial que organizou foram livres e justos”. Nos meses que antecederam o golpe que o derrubou, Condé também recorreu à violência para reprimir opositores e activistas.
No Mali, a situação foi semelhante: o ex-presidente Ibrahim Boubacar Keita foi acusado de corrupção e de falsificar os resultados das legislativas de 2020, o que abalou a sua legitimidade. Ambos foram castigados porque eles – não os cidadãos – se afastaram da democracia.
E a prova está numa sondagem da rede de investigação Afrobarometer, segundo a qual 76% dos guineenses e 70% dos malianos se opõem ao poder militar. O mesmo estudo concluiu que a democracia tem o apoio de 77% das pessoas na Guiné-Conacri, 70% no Burkina Faso e 62% no Mali.
O que deixa muitos países vulneráveis a golpes militares e constitucionais é a ausência de uma oposição forte. Segundo a Afrobarometer, em 2022 só 44% dos africanos acreditavam que eleições permitem afastar líderes indesejáveis.

© Jean Bizimana | Reuters
O Ruanda, por exemplo, assume-se como uma democracia multipartidária, mas é, de facto, um Estado de partido único. Em Setembro, Paul Kagamé, presidente em Kigali desde 1994, confirmou que vai candidatar-se, em 2024, a um quarto mandato, depois um referendo constitucional em 2015 o ter autorizado a concorrer a um terceiro de 7 anos e a mais dois de 5 anos.
Em 2017, Kagamé obteve “quase 99% dos votos” numa eleição que viu partidos políticos ilegalizados e opositores assassinados.
Para o Ocidente, Kagamé pode incluir-se no grupo dos “ditadores benevolentes” criticados por Abu Bakarr Jalloh, da Serra Leoa, num artigo no site DW. A Europa e os EUA fecham os olhos as manipulações eleitorais, à prisão arbitrária de dissidentes, à repressão de manifestantes, às guerras que se prolongam (como os conflitos na República Democrática do Congo, onde Kagamé está envolvido), mas continuam a dar apoio financeiro em troca de acesso ilimitado aos recursos naturais.
“É por isso que os africanos estão a perder a paciência e insistem em que a sua voz seja ouvida.” Infelizmente, os únicos que respondem são coronéis, capitães e generais.
* O título inspira-se em O Outono do Patriarca, do escritor colombiano Gabriel García Márquez, romance que tem como protagonista um general sem nome, um ditador imaginário e sanguinário das Caraíbas que se vê na “ignomínia de mandar sem poder, de ser exaltado sem glória e de ser obedecido sem autoridade”. Esta obra, que faz sobressair a tragédia de uma nação explorada por colonizadores europeus e a tirania dos que os substituíram, centra-se na América Latina do passado (o segundo continente com mais golpes de Estado), mas podia ser também um retrato de alguns déspotas africanos do presente.
** O primeiro golpe militar no continente africano ocorreu no Egipto, em 1952, quando o Movimento dos Oficiais Livres, liderado por Mohamed Naguib e Gamal Abdel Nasser, derrubou o rei Farouk e a monarquia. A intervenção militar começou na noite de 23 de Julho e durou até ao dia 28, quando Naguib se tornou o primeiro presidente da República. Nasser derrubaria Naguib num outro golpe, em 27 de Fevereiro de 1954.
Este artigo foi publicado originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Novembro de 2023 | This article was originally published in the November 2023 edition of the Portuguese news magazine ALÉM-MAR.
