Uma história de desencontros e encontros

Na sua visita a Ulan Bator, o Papa Francisco ofereceu ao presidente, Ukhnaagiin Khürelsükh, uma “cópia autenticada” de uma carta que, em 1246, numa troca de correspondência azeda, o imperador Güyük enviou ao pontífice Inocêncio IV. Aquela missiva e relatos subsequentes ajudam a perceber por que só agora, 777 anos depois, foi possível ao chefe da Igreja Católica apresentar-se aos Mongóis como “peregrino da amizade”. (Ler mais | Read more…)

O imperador mongol Hulagu Khan, neto de Gengis Khan e fundador do Ilcanato, e a sua mulher, a rainha cristã nestoriana, Doquz Khatun.
© Rachid Ad-Din “History of the world”, séc. XIV | Wikipédia

No domingo de Páscoa, 16 de abril de 1245, quando partiu de Lyon como emissário do Papa Inocêncio IV para entregar uma carta ao “rei e príncipes de todos os Tártaros” (1), o frade Giovanni da Pian del Carpine pouco sabia sobre eles.

Mas eles já conheciam o Cristianismo, que, entre os séculos VII e VIII, através da Igreja Assíria do Oriente (fundada por Nestório, bispo de Constantinopla), chegou às estepes do que viria a ser um dos maiores impérios do mundo, para aqui se tornar uma “minoria substancial”.

Após 106 dias de uma viagem árdua, o enviado papal, de 65 anos e saúde frágil, chegou aos arredores de Karakorum, a capital imperial mongol, a 22 de julho de 1246, no meio das festividades da coroação de Güyük, neto de Gengis Khan e filho do sucessor deste, o Grão-Cã Ögedei.

A missão de Carpine era “descobrir o máximo possível sobre um povo estranho que ameaçava a Europa”, escreve Jack Weatherford, um dos maiores estudiosos da Mongólia, no seu livro Genghis Khan e a Criação do Mundo Moderno.

A carta do Papa Inocêncio IV a Güyük Khan, Arquivos Secretos do Vaticano
© Balladalus.wordpress.com

Os anfitriões acolheram bem o visitante, até se aperceberem do conteúdo da carta de que era portador. Inocêncio IV, comenta o antropólogo que nasceu na Carolina do Sul e hoje vive na montanha de Bogd Khan, sobranceira a Ulan Bator, apresentou a Güyük “uma sinopse pedante da vida de Jesus e dos principais ensinamentos cristãos”, que o imperador “conhecia bem, dado que a sua mãe era cristã e que ele a acompanhava às cerimónias religiosas”.

Posteriormente, Carpine reconheceria (2) que o imperador “estava prestes a tornar-se cristão”, porque essa era a “convicção firme de outros cristãos que constantemente o acompanhavam”. Güyük montara até “uma capela para os cristãos em frente à sua grande tenda, onde, a determinadas horas, “sacerdotes cantavam para o público”.

Inquirido sobre a sua missão, Carpine decifrou a carta de Inocêncio. Os Tártaros eram convidados a “receber a fé de Nosso Senhor Jesus Cristo, para serem salvos”. Eram criticados por terem invadido a Europa e pela “perseguição aos cristãos”.

Eram intimados a “desistir” destas campanhas militares, a dar “uma explicação cabal sobre as ofensivas para destruir outras nações” e a revelar “as suas intenções futuras”. Exigindo uma resposta a todos estes pontos, Inocêncio IV assumia-se como “a única pessoa autorizada a falar em nome de Deus”, que lhe conferira “todo o poder terreno”.

Carta de Güyük para Inocêncio IV, Arquivos Secretos do Vaticano
© Balladalus.wordpress.com

O pontífice temia que os guerreiros mongóis, amaldiçoados pelo rei Frederico II da Prússia como “filhos do Inferno”, chegassem a Itália e aos seus domínios, depois de, em várias batalhas, terem derrotado búlgaros, polacos, russos, húngaros e alemães, avançando até às portas de Viena.

Esta vitoriosa campanha – “um revés religioso e uma perda militar” para a Europa – só terá sido interrompida, ao fim de cinco anos (começou em 1236), porque Ögedei morreu, sendo necessário convocar um khuriltai, conselho de tribos, para escolher um herdeiro. Sem acordo, a viúva Töregene Khatun, mãe de Güyük, cristã nestoriana, tornou-se a primeira regente oficial do império, de 1242 até 1246.

Os quatro filhos e potenciais herdeiros de Genghis Khan – Jochi, Chaghatai, Ögedei e Tolui – desposaram mulheres cristãs após integrarem pela força as tribos nestorianas Kereyid e Naiman, apresentadas por Weatherford como “grandes unidades políticas e culturas desenvolvidas, supostos descendentes do apóstolo Tomé e dependentes de monges itinerantes”, sem igrejas nem mosteiros.

“Praticavam a religião em gers [as tendas circulares mongóis], desvalorizavam a teologia e a rigidez da doutrina a favor de uma leitura variada das Escrituras.” O filho favorito do Grão-Cã Ögedei era o cristão Shiremun, assim chamado em honra do bíblico Salomão.

Representação do franciscano Giovanni Carpine a entregar a carta do Papa Inocêncio ao Cã do Império Mongol em 1246.
© Wikimedia

Em 1246, quando os responsáveis mongóis concluíram que Giovanni Carpine não lhes oferecia o tributo e a submissão que esperavam do chefe da Igreja Católica, a reacção inicial foi ignorarem-no, relata Weatherford.

Depois, enviaram-no de regresso a casa com uma carta para Inocêncio IV, onde Güyük pergunta: “Como sabeis vós quem Deus absolve e com quem Ele é misericordioso? Deus deu aos Mongóis, e não ao papa, o controlo do mundo, do nascer ao pôr do sol.”

Güyük exortou também o pontífice a “vir com os seus príncipes homenagear o Cã mongol em Karakorum” – a capital que, enfatiza Weatherford, “era, possivelmente, naquela época, “a cidade mais aberta e tolerante do mundo às diferentes religiões, onde todos podiam rezar, lado a lado, em paz.”

Inocêncio IV demorou dois anos a responder. Agradeceu a resposta de Güyük e rejeitou a submissão que ele exigiu.

Inocêncio IV envia frades dominicanos e franciscanos em missão aos domínios dos Mongóis.
© Vincent of Beauvais, Le Miroir Historial Vol. IV, Paris, c. 1400-1410 | Balladalus.wordpress.com

Quase oito século anos depois desta correspondência, foi uma cópia autenticada da carta de Güyük, guardada nos arquivos da Santa Sé, que o Papa Francisco ofereceu ao presidente, Ukhnaagiin Khürelsükh, durante a sua visita à Mongólia, em Setembro, um gesto que o vaticanista Joh L. Allen Jr, do site Crux, interpretou como sinal de que “o tempo sara as feridas e ajuda a reformular as perspectivas de sucesso e fracasso”.

No agradecimento a Francisco, Khürelsükh elogiou Carpine, apreciando que as memórias da sua viagem, publicadas como Ystoria Mongalorum Quos Nos Tartaros Appellamus (“História dos Mongóis aos Quais Chamamos Tártaros“) se mantenham “um recurso precioso” para compreender a Mongólia e a Eurásia da Idade Média.

Até partir, em 1247, Carpine aproveitou para tirar apontamentos sobre “os valores, costumes e atitudes” dos anfitriões – do “modo como adoravam Deus” ou “o que consideravam pecado” até aos seus ritos funerários.

Nessas notas, salienta Allen Jr, “embora o emissário papal descreva várias vezes os Mongóis como bárbaros e cruéis, repudiando-os como ameaça iminente à Igreja de Deus, também se mostra profundamente “sensibilizado com a honestidade [do povo] e com o seu estoicismo, pois, nas longas cavalgadas pelas estepes nunca se queixavam do calor, do frio ou do vento”.

A rainha cristã nestoriana Sorghaghtani (à direita) e o marido, o imperador Tolui, o filho mais novo de Gengis Khan.
© Genghis Khan et l’Empire Mongol by Jean-Paul Roux, collection “Découvertes Gallimard” (nº 422), série Histoire | Wikipédia

Güyük, que queria prosseguir as conquistas mongóis e incluir a Europa nos seus amplos domínios, enfrentou a oposição de outra poderosa regente e cristã nestoriana, Sorkhokhtani (ou Sorghaghtani Beki), viúva de Tolui, o filho mais novo de Genghis Khan.

Em 1248, aos 43 anos, saudável e apenas há 18 meses em funções, Güyük morreu de “causas misteriosas”, supostamente envenenado, no momento em que chegava à Mongólia outro enviado de Inocêncio IV, o frade dominicano André de Longjumeau. Também este foi ignorado, desta vez pela viúva e regente, Oghul Ghaimish.

Em 1250, sob o reinado de Möngke, filho mais velho de Tolui e Sorkhokhtani, o Cristianismo florescia, em parte graças às esposas nestorianas na família, mas também “devido à lealdade de nações cristãs, como a Geórgia e a Arménia”, segundo Mark Weatherford.

Ascelino da Lombardia recebe uma carta de Inocêncio IV para ser entregue ao general mongol Baiju.
© Chronique des Empereurs (“Crónica dos Imperadores”), de David Aubert (1462), reprodução em Genghis Khan et l’Empire Mongol, de Jean-Paul Roux, colecção “Découvertes Gallimard” (nº 422), série Histoire | Wikipédia

Três anos depois, foi a vez de chegar a Karakorum o monge franciscano Guilherme de Rubruck, como enviado do rei francês Luís IX, líder das cruzadas no Mediterrâneo Oriental, interessado numa aliança com os Mongóis contra os muçulmanos na Síria, mas também em converter o grão-cã.

Durante a sua estadia, o flamengo Rubruck “pôde ver como o imperador e a mulher celebravam o Natal, numa igreja onde ambos se sentavam em poltronas douradas em frente ao altar”, refere Weatherford. “Apesar da religião comum, ele não apreciava a presença dos cristãos assírios, arménios e ortodoxos na corte mongol, porque, para ele, os não-católicos eram hereges. Ressentia-se, em particular, por os nestorianos “considerarem Maria mãe de Cristo, mas não Mãe de Deus”, porque distinguiam a natureza humana e divina de Jesus.

“Möngke deixou Rubruck à espera de uma audiência durante vários meses, até o receber em 24 de maio de 1254. O enviado do monarca francês disse-lhe que o seu propósito era “espalhar a palavra de Deus entre os Tártaros”. Perante uma assembleia de vários representantes religiosos, o imperador pediu-lhe, então, que explicasse o que era a palavra de Deus, conta Weatherford.

“O frade sublinhou a importância do mandamento do amor a Deus sobre todas as coisas. Um dos clérigos muçulmanos surpreendeu-se: Mas há alguém que não ame Deus? Ao que Rubruck respondeu: Os que não seguem os seus mandamentos não O amam.

Sob o reinado do imperador Möngke (aqui sentado no trono), o Cristianismo floresceu graças às esposas nestorianas na família e à lealdade de nações cristãs, como a Geórgia e a Arménia.
© Wikimedia

Porque ninguém se parecia entender, o imperador mandou-os regressar noutro dia, para uma “competição” perante uma ampla audiência, supervisionados por três juízes: um cristão, um muçulmano e um budista. Foi imposta uma regra: “Sob pena de morte, ninguém deve usar palavras ofensivas”.

No primeiro round, o frade católico debateu com um monge budista, que começou por perguntar como foi criado o Mundo e o que acontecia à alma depois da morte. Rubruck contrapôs que a pergunta deveria ser sobre Deus que tudo criou, e os árbitros validaram a resposta. O debate prosseguiu, de acordo com Weatherford, sobre tópicos vários sobre a natureza de Deus ou se Deus criou o Diabo.

“As razões teológicas de uns não convenciam os outros. Os cristãos desistiram dos seus argumentos lógicos e começaram a cantar. Os muçulmanos, porque a música lhes era interdita, recitavam versículos do Corão e os budistas retiraram-se em meditação silenciosa. No final, porque não se converteram nem mataram uns aos outros, as celebrações terminaram.”

Poucos dias após este debate, Möngke mandou chamar Rubruck para lhe dar ordem de partida e entregar uma carta dirigida a Luís IX, onde se lê: “No Céu, só há um Deus Eterno e, na Terra, só há um senhor, Genghis Khan. (…) O nosso país é longínquo, as nossas montanhas são imponentes e o nosso mar é vasto; se, ainda assim, trouxerem um exército contra nós – já sabeis o que faremos.”

Niccolo and Maffeo Polo entregam uma carta de Kubilai Khan ao Papa Gregório X, em 1271.
© Le livre des Merveilles du Monde (“Livro das Maravilhas do Mundo”), de Marco Polo | Wikipédia

Um ensaio do historiador Timothy May (3) ajuda a explicar esta mensagem: “Venerando apenas divindades distintas, entre elas Koke Mongke Tenggeri (O Eterno Céu Azul)”, os Mongóis não impunham os seus valores e poupavam as estruturas religiosas dos países que invadiam e subjugavam, desde que ninguém ameaçasse a estabilidade e a supremacia do seu império – essa era a “linha vermelha”.

Até à divisão deste império, recorda May, autor de vários livros e de uma enciclopédia sobre os Mongóis, estes “resistiram sempre à conversão, porque acreditavam, segundo o seu conceito de Tengerismo ou Xamanismo, que tinham o direito divino de conquistar o mundo.

Em 1266, Kubilai Khan, um dos irmãos de Möngke, enviou uma carta ao Papa Gregório X, pedindo-lhe 100 missionários. No que hoje muitos qualificam de “a maior oportunidade perdida na história cristã”, o pontífice enviou apenas dois, que, temerosos, desistiram da viagem a meio.

Até à divisão do seu império, diz o historiador Timothy May, os Mongóis “resistiram sempre à conversão, porque acreditavam, segundo o seu conceito de Tengerismo ou Xamanismo, que tinham o direito divino de conquistar o mundo.
© Getty Images | ThoughtCo.

Em 1294, quando outros missionários chegaram à Asia do Leste, Kubilai já se tinha aproximado do Budismo, e o Catolicismo só voltou à Mongólia em 1992.

Em 1288, numa digressão pela Europa comparada à do veneziano Marco Polo, o monge e embaixador nestoriano Rabban Bar Sauma, um uigur convertido ao Cristianismo, ficou surpreendido ao descobrir que só a sua religião era tolerada, em contraste com o Império Mongol, onde todas prosperavam.

Em 2023, na primeira visita de um papa à nação fundada por Genghis Khan, Francisco encontrou-se com xamãs e xintoístas, budistas e taoístas, judeus e cristãos ortodoxos, mórmones e muçulmanos, adventistas e bahá’ís, para a todos deixar uma garantia como “peregrino da amizade”: a Igreja Católica “respeita o que as outras tradições religiosas têm para oferecer”, porque “a sua fé assenta no diálogo eterno entre Deus e a humanidade”.

Oito dos 15 grandes cãs do Império Mongol: Genghis Khan (em cima, à esq.), reinou entre 1206 e 1227; Ogodei Khan (em cima, a meio, à esq.), reinou de 1229 até 1241; Kubilai Khan (em cima, ao a meio, à dir.), reinou entre 1260 e 1294; Temur Khan (em cima, à dir.), reinou de 1294 a 1307; Buyantu Khan (em baixo, à esq.), reinou entre 1311 e 1320), Külüg Khan (em baixo, ao meio, à esq.), reinou entre 1307 e 1311; Jayaatu Khan Tugh Temur (em baixo, a meio, à dir.), reinou entre 1328 e 1332; Rinchinbal Khan (em baixo, à dir.), reinou menos de 3 meses, em 1332.
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(1) The Journey of Friar John of Pian de Carpine to the Court of Kuyuk Khan, 1245-1247

(2) A tribo de Gengis Khan tem vários nomes – Tártaro, Tátaro, Mugal, Mogol, Moal e Mongol – e o seu nome, lamenta o antropólogo Jack Weatherford carregou sempre uma “odiosa maldição”. No século XIX, quando cientistas quiseram “provar a inferioridade” das populações índias e asiáticas da América, classificaram-nas como “mongolóides”. Quando médicos quiseram justificar por que mães da “superior raça branca” davam à luz filhos com atraso mental, alegavam que, pelas características faciais das crianças, “era óbvio” que os seus antepassados “foram violados por guerreiros mongóis”. E quando capitalistas demonstram tendências autoritárias e anti-democráticas, ainda hoje são chamados de moguls, a palavra inglesa que, em persa, significa Mongóis.

(3) Converting the Khan: Christian Missionaries and the Mongol Empire

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