Cristãos da Palestina: Fé e resistência

Em Setembro, os católicos da Terra Santa ganham o seu primeiro cardeal. A decisão do Papa Francisco é olhada como sinal de esperança. Numa altura em que padres, patriarcas e leigos, igrejas, cemitérios e mosteiros são alvo de ataques crescentes de colonos israelitas extremistas, entrevistei Rafi Ghattas, de Jerusalém, Xavier Abu Eid, em Ramallah, Dalia Qumsieh, em Beit Sahur, e Hiba Khoury, em Amã. O passado é uma via dolorosa. O futuro pode ser a ressurreição. (Ler mais | Read more…)

Este artigo foi publicado originalmente na revista ALÉM-MAR em Setembro de 2023, antes da guerra iniciada em Outubro na Faixa de Gaza – território onde existiam algumas das igrejas e mesquitas mais antigas do mundo. Dos 117 templos e santuários que terão sido danificados ou destruídos por bombardeamentos israelitas, em represália por um massacre do Hamas, uma investigação da BBC confirmou 74 casos, um deles o da Igreja de São Porfírio.

Um presépio na Igreja Evangélica Luterana em Belém, na Cisjordânia ocupada, mostra o Menino Jesus embrulhado num keffiyeh e colocado sobre escombros, em solidariedade com os palestinianos na Faixa de Gaza, sujeitos a mortíferos bombardeamentos israelitas.
©Milwaukee Independent | Associated Press (AP)

Rafi Ghattas, que nasceu e vive em Jerusalém Leste, é uma “pessoa indefinida”, para o Estado de Israel. Não tem nacionalidade nem cidadania. É essa a informação inscrita no documento que lhe permitiu viajar até Lisboa para participar na Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Mas não é assim que ele se vê.

“Como palestiniano e cristão, a minha nacionalidade é a cruz”, diz-me Ghattas, numa entrevista por e-mail, numa pausa nos seus caminhos de peregrino. “Eu carrego uma cruz pesada. A cruz de um povo despojado. A cruz de um sistema de apartheid. A cruz do medo de, um dia, ser expulso da minha casa e dos meus lugares sagrados. Carrego esta cruz, porque acredito que, tal como Jesus não se rendeu para nos oferecer a salvação, também nós haveremos de ressuscitar na Terra, antes do Céu.”

A mais antiga população cristã do mundo faz remontar as suas raízes na Terra Santa há 2000 anos. Terminado o domínio otomano, no início do Mandato Britânico, os cristãos na Palestina constituíam 11% da população – mais de 70 mil pessoas, segundo um censo de 1922. O censo mais recente, de 2017, indica que são agora “menos de 1%”, ou 47 mil.

Em 17 de Dezembro de 2022, jovens palestinianas posam para uma selfie junto à árvore de Natal montada na Igreja da Sagrada Família, na Cidade de Gaza.
© Reuters

A mais pequena comunidade é a da Faixa da Gaza. Em 2022, dos mais de 2,3 milhões de habitantes, os Nasrani [“nazarenos”, a palavra árabe para cristãos] “totalizavam 1017, a maioria ortodoxos gregos, sendo 136 – 30 famílias – membros da única paróquia católica”, refere o site The Tablet. Pelo menos 56% dos cristãos palestinianos vivem na diáspora (exilados, refugiados e outros).

Há um século, eram cristãos 4 em cada 5 residentes de Belém, a cidade onde Jesus nasceu – agora, apenas 1 em cada 5 (1).  Em Jerusalém, que tem a “taxa per capita mais elevada de igrejas” (95) em todo o mundo – “1 para cada 177 fiéis” (2) –, havia 29.350 cristãos em 1944. No final de 2019, restavam 12.900 (3).

Francesco Patton, Custódio da Terra Santa, Guardião do Monte Sião e do Santo Sepulcro em Jerusalém, alerta para a “ameaça de extinção” dos cristãos da Palestina. Num artigo publicado, em 2021, no diário britânico The Telegraph, escreveu este franciscano, Superior dos Frades Menores: “Israelitas radicais estão a travar uma guerra de atrito contra crentes pacíficos. Precisamos de ajuda para sobreviver.”

Não é possível determinar o número exacto de ataques contra padres, patriarcas e leigos, igrejas, cemitérios e mosteiros, mas o grupo israelita Tag Meir, que tem como missão “erradicar o racismo e a violência contra as minorias”, confirma “um aumento dramático” de incidentes em 2023, desde que foi criado o “governo mais extremista da história de Israel.  

Cristãos palestinianos celebram o Domingo de Ramos na igreja ortodoxa de São Porfírio, na Cidade de Gaza, em 24 de Abril de 2016.
© Ashraf Amra | APAImages | Middle East Monitor

A situação tornou-se tão grave que o patriarca latino de Jerusalém, Pierbattista Pizzaballa, veio a público condenar “os perigosos crimes de ódio e sabotagem” de que os cristãos estão a ser vítimas. Na Igreja da Flagelação, primeira estação da Via Sacra, uma imagem de Cristo foi vandalizada. Pelo menos 30 sepulturas de um cemitério protestante foram profanadas.

Na abadia onde está o túmulo da Virgem Maria, no Monte das Oliveiras, um jovem entrou com uma barra de ferro e ameaçou quem ali estava. Nas paredes do bairro arménio, junto ao bairro judeu, alguém escreveu: “Morte aos cristãos”.

Rafi Ghattas admite o pavor de andar pelas ruas da Cidade Velha. “Quando passam por nós, no Caminho da Cruz por exemplo, colonos judeus insultam-nos, amaldiçoam-nos, cospem-nos”, relata o jovem de 26 anos, que é coordenador da juventude cristã da Palestina e do Médio Oriente. “Não poupam sequer as freiras e os patriarcas. Soldados e polícias israelitas vêm tudo isto, ficam impávidos e riem-se. Podem até deter alguns agressores, mas estes são libertados poucas horas depois. Nunca são punidos. Se um palestiniano tentar atacar um israelita é morto imediatamente.”

“Em Jerusalém, tenho medo de usar o meu crucifixo, participar numa procissão, rezar, dizer quem sou e o que penso. Somos atacados, acima de tudo, por sermos cristãos palestinianos. E é lamentável que este desprezo [os cristãos são vistos pelos por uma minoria de zelotas como pagãos e adoradores de ídolos] seja ensinado às crianças nas yeshivas [escolas talmúdicas].”

Padres franciscanos reunidos em oração junto à imagem de Jesus Cristo na Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém Oriental, durante as cerimónias da Quaresma.
© Thomas Coex | AFP | The National News

Teófilo III, patriarca da Igreja Greco-Ortodoxa de Jerusalém, a maior das 15 denominações cristãs da Palestina, diz que os judeus extremistas envolvidos nos ataques “estão obcecados com o ‘síndroma messiânico’, desejosos de se apoderar de toda a terra”.

E acrescenta: “Eles não têm medo porque sabem que alguém os apoia” – alusão a Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, ministros da Segurança Nacional e das Finanças, respectivamente, que incitam e defendem os agressores.

Para Rafi Ghattas, nunca foi fácil viver em Jerusalém Leste, sob lei militar israelita. “Sou discriminado por ser palestiniano. Não posso votar para o Parlamento e eleger os representantes que controlam a minha vida, mas pago todos os impostos. Se for trabalhar para o estrangeiro, perco o direito de residência. Nem sequer preciso de sair do país: se me casar com uma rapariga de Nablus, na Cisjordânia, e ali ficar com ela, não mais posso voltar. E dificilmente ela será autorizada a morar comigo.”

“Os cristãos querem uma vida digna”, sublinha Ghattas, formado em Jornalismo na Universidade de Birzeit, na Cisjordânia, e em Turismo, na Universidade Hebraica de Jerusalém. “Não acredito na violência, mas reclamo o direito à resistência. Quando a a nossa família e a nossa fé estão em perigo, temos o dever de resistir.”

Não é possível determinar o número exacto de ataques de colonos judeus contra padres, patriarcas e leigos, igrejas, cemitérios e mosteiros, mas o grupo israelita Tag Meir, que tem como missão “erradicar o racismo e a violência contra as minorias”, confirmou “um aumento dramático” de incidentes em 2023, desde que foi criado o “governo mais extremista da história de Israel.
© Milwaukee Independent | Associated Press (AP)

Na “vanguarda dos mais criativos movimentos de resistência à ocupação israelita” (4) está Beit Sahur, 1,5km a leste de Belém, uma cidade onde 80% dos habitantes são cristãos (a maioria da Igreja Ortodoxa Grega). Os “Sahuris” entraram na história palestiniana em Setembro de 1989, na primeira Intifada, com uma corajosa acção de desobediência civil: uma greve aos impostos para boicotar a ocupação.

Durante 42 dias de cerco e recolher obrigatório, desafiaram sem armas os cobradores e os soldados, apoiados por tanques e helicópteros, que chegaram para expropriar bens no valor de 7,5 milhões de dólares de mais de 350 famílias. (5)

É em Beit Sahur que vive e trabalha Dalia Qumsieh, a advogada que, em 2021, fundou a Balasan Initiative for Human Rights, organização não governamental que visa representar “a [nossa] ligação à Palestina como palestinianos e cristãos, um pequeno contributo para curar as injustiças”.

“Inspirei-me na palavra árabe balasan, nome de uma árvore [a do bálsamo de Gileade, referido em 3 versículos bíblicos] que existe na Palestina há milhares de anos e cujas folhas servem para tratar enfermidades”, explica-me Dalia Qumsieh, por e-mail.  Um dos mais recentes relatórios da Iniciativa Balasan dá conta de “múltiplos ataques”, incluindo tentativas de fogo posto, cometidos em Julho contra o mosteiro católico melquita de São Elias, em Haifa.

O arcebispo Hosam Naoum inspecciona um túmulo vandalizado por colonos judeus extremistas no cemitério protestante do Monte Sião, em Jerusalém, em Janeiro de 2023.
© Reuters | Daily Sabah

Alarmado, o presidente de Israel, Isaac Herzog, deslocou-se a Haifa, em 9 de Agosto, para visitar o mosteiro de Nossa Senhora do Monte Carmelo (Stella Maris), que alguns colonos exigem transformar num santuário judaico. Herzog condenou actos “extremos e inaceitáveis” e prometeu “protecção total”, mas Dalia Qumsieh não espera que as autoridades israelitas castiguem os crimes.

“As últimas estatísticas de mortes e ferimentos resultantes de investidas de soldados e colonos comprovam que somos um alvo deliberado”, critica a advogada. O site da Al Jazeera noticiou que “mais de 200 palestinianos, incluindo 35 crianças”, foram mortos nos territórios ocupados, “o que faz de 2023 um dos anos mais mortíferos” desde que a ONU iniciou estes registos em 2005.

“A lei que nos é imposta é a de Israel, através de ordens militares”, informa Qumsieh, que se formou em Direito Internacional na Universidade de Birzeit e na Sorbonne, em Paris. “Os tribunais a que temos de recorrer, pois não há alternativa, são israelitas. Temos de jogar segundo as regras de Israel. Não há protecções mínimas. Os tribunais solidificam as políticas coloniais, porque as legalizam.”

Uma imagem da Virgem Maria, com a inscrição “Feliz Natal”, pintada no muro de separação (ou do apartheid – como os palestinianos o designam), que atravessa a cidade de Belém, na Cisjordânia ocupada por Israel.
©mondoweiss.net

“Eu sou da Cisjordânia e, com um cartão de identidade [emitido pela Autoridade Palestiniana], não posso entrar num tribunal israelita. Para representar palestinianos, tenho de recorrer a advogados de nacionalidade [judeus] ou cidadania [árabes] israelita.”

“Neste sistema não há, para nós, vitórias grandes ou pequenas, porque as principais políticas israelitas nunca são questionadas. Um exemplo: processo contra a construção do muro da anexação [que afecta 90% da Cisjordânia], não foi questionada a legalidade da edificação – que viola o Direito Internacional -, mas apenas o trajecto numa determinada área.”

A história dos Qumsieh entrelaça-se com a de outras famílias na Palestina. “É uma história de exílio, de vida sob ocupação brutal, de persistência para continuar na pátria”, afirma Dalia. “Porque Israel exilou o meu pai, no início da década de 1970, eu nasci e fui em parte criada no Kuwait. No início da guerra do Golfo [1991], a família fugiu para a Jordânia e aqui vivemos até o pai ser autorizado a entrar novamente na Palestina, em 1994, após os Acordos de Oslo.”

De Beit Sahur até Jerusalém são 18 minutos de autocarro, mas Dalia não tem licença para visitar as igrejas da cidade sagrada para as três religiões monoteístas. “Israel bloqueou o acesso. Exige-nos um pedido prévio e formal. Se este for aceite, o exército define os dias e as horas. A passagem é feita por checkpoints especiais. Para os colonos, há livre circulação. Se vamos a tribunal saber por que nos foi negada a entrada, não dizem   o motivo ou justificam com informações secretas.”

23 de Abril de 2022: Cerimónia do Fogo Sagrado, para partilhar a chama que, de acordo com a fé ortodoxa, se “acende milagrosamente” no interior da Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, no sábado que antecede a Páscoa.
© AFP

“É um privilégio ser membro da comunidade cristã onde nasceu o Cristianismo”, garante Dalia. “Estamos orgulhosos de ter ajudado a formar a identidade nacional palestiniana. Mas também conscientes da responsabilidade: preservar a nossa presença e as nossas tradições; desafiar as causas profundas da erosão do Cristianismo no seu berço; lutar por uma Palestina livre, onde possamos viver com dignidade, liberdade, igualdade e justiça.”

“É uma grande responsabilidade mostrar os verdadeiros valores da nossa fé e contrariar os que, com base em alegações bíblicas [como os cristãos evangélicos sionistas], justificam a brutalidade da ocupação e colonização de Israel.”

Segundo uma sondagem (6) realizada em 2022, “o impacto da ocupação, designadamente os checkpoints, os ataques de colonos e a expropriação de terras” estão entre as principais razões que levam os cristãos a emigrar, para os Estados Unidos, o Canadá e a Europa, mas também “problemas económicos, falta de oportunidades de educação, insegurança, instabilidade, corrupção, ausência de liberdade e intolerância religiosa”.

Teófilo III, patriarca da Igreja Ortodoxa Grega de Jerusalém, a maior das 15 denominações cristãs na Palestina, diz que os judeus extremistas envolvidos em ataques contra fiéis “estão obcecados com o ‘síndroma messiânico’, desejosos de se apoderar de toda a terra”.
© Milwaukee Independent | Associated Press (AP)

Dalia Qumsieh sugere uma reflexão sobre “as causas profundas” que levam os irmãos de fé a partir, porque, “qualquer dia, não haverá cristãos autóctones na Palestina”. Faz um apelo ao resto do mundo: Acções mais decisivas “para fazer respeitar o Direito Internacional, tal como acontece na Ucrânia.” E deixa um recado aos cristãos de outros países: “Quando nos visitarem, façam peregrinações éticas, evitem os colonatos, colaborem com as comunidades locais e a sociedade civil.”

“O turismo religioso é um negócio controlado por empresas interessadas em transmitir a propaganda israelita”, confirma Rafi Ghattas, que é guia profissional. “É preciso garantir que os grupos de visitantes cristãos também conhecem as pedras vivas da Terra Santa, ou esta irá transformar-se num sítio apenas de pedras mortas”.

Sobre a emigração, Ghattas deixa claro que é “totalmente contra”, desencorajando a própria família. “Perguntei aos jovens cristãos palestinianos na JMJ de Lisboa [150 da Cisjordânia, 40 da Galileia, e 125 da Jordânia – Israel negou vistos a dois que viriam da Faixa de Gaza] se gostariam de emigrar: 50% responderam que sim. Porque não têm perspectivas para o dia seguinte. É duro quando não se vê a linha de horizonte do futuro.”

Francesco Patton, Custódio da Terra Santa, Guardião do Monte Sião e do Santo Sepulcro em Jerusalém, alerta para a “ameaça de extinção” dos cristãos da Palestina: “Israelitas radicais estão a travar uma guerra de atrito contra crentes pacíficos. Precisamos de ajuda para sobreviver.”
© Milwaukee Independent | Associated Press (AP)

A viver em Ramallah, cidade onde a outrora maioria cristã é hoje uma “significativa minoria”, Xavier Abu Eid fez o percurso inverso ao de Judeh, o seu sido (avô), forçado pela Nakba (“Catástrofe”) – o êxodo em 1948 de “750.000 a um milhão” de pessoas (7) –, a emigrar para o Chile, a 12 mil quilómetros de distância da sua aldeia de Beit Jala, nas imediações de Belém.

A viagem para a América Latina, que, em “mais de 100 anos de imigração” (8), desde os tempos do Império Otomano, se transformou num influente centro político e cultural da diáspora palestiniana, “foi muito penosa”, conta-nos, por e-mail, Xavier Abu Eid, autor de Rooted in Palestine: Palestinian Christians and the Struggle for National Liberation 1917-2004, um livro no qual “desafia equívocos e estereótipos sobre os cristãos palestinianos”.

Judeh Abu Eid levou consigo uma imagem de S. Jorge, santo que deu nome a uma das igrejas onde rezava. Demorou três meses e fez sete escalas até chegar a Santiago: Jerusalém, Amã, Damasco, Beirute, Sicília, Rio de Janeiro e Buenos Aires.

“Sem grande escolha, a geração do meu avô foi obrigada a abandonar a sua terra, enquanto uma grande parte do mundo celebrava [a criação de Israel] como intervenção divina. A Nakba significou a interrupção de uma nação, mas também a sua transformação.”

O Patriarca Latino de Jerusalém, Pierbattista Pizzaballa, culpa o governo de extrema-direita de Israel pela crescente hostilidade para com os cristãos da Palestina.
© Ammar Awad | Reuters | The Guardian

“[Judeh] fez tudo para garantir que não esqueceríamos a Palestina, onde a sua vida era muito simples”, prossegue Abu Eid. “Ele cortava pedra e construía mansões para os palestinianos ricos de Talbiya e Qatamon”, bairros cristãos famosos por uma luxuosa arquitectura renascentista e mourisca, em Jerusalém Ocidental. Uma das casas em Talbiya (hoje com o nome hebraico de Komeniyut) seria ocupada por Golda Meir, primeira-ministra de Israel.

“Pessoa de grande fé, [Judeh] nunca percebeu o processo que levou à perda da pátria. Nunca esqueceu os milhares de refugiados que acorreram a Beit Jala em fuga dos massacres [como o de Der Yassin] cometidos [por milícias sionistas] muito próximo da nossa aldeia, e de como tudo mudou. Nunca se integrou bem no Chile. A sua dor nunca desapareceu, até ao último dia da sua vida.”

Xavier Abu Eid nasceu em Santiago e aqui se licenciou em Ciência Política, na Universidade Diego Portales, graças aos esforços de Judeh, que abandonou a escola aos 11 anos para sustentar a família. Fez depois dois mestrados, em Estudos Diplomáticos, na Universidade de Leicester, no Reino Unido, e em Processos de Mediação de Paz, na universidade suíça ETH Zurich. Actualmente, está a concluir o doutoramento em Estudos Religiosos no Trinity College, em Dublin, Irlanda.

Uma peregrina cristã ortodoxa participa numa procissão de Sexta-Feira Santa, em 18 de Abril de 2014, na Cidade Velha de Jerusalém.
© Saeed Qaq | APAImages | Middle East Monitor

Sido Judeh, que sempre escutava o “eterno êxito” Wein a Ramallah [“Vamos para Ramallah”], foi um dia surpreendido pelo anúncio da partida do neto para a Palestina. “Vou tentar fazer o que não conseguiste” (9), prometeu Xavier. Mas não foi fácil para este cientista político, hoje conselheiro da Autoridade Palestiniana na capital administrativa de facto de um Estado reconhecido por 139 dos 193 países membros da ONU (incluindo Portugal).

“Regressar foi uma luta, porque a ocupação israelita apagou a minha família de todos os registos populacionais”, anota Abu Eid. “Mas decidi ficar e não estou arrependido, ainda que seja um retorno incompleto, enquanto todo o meu povo não puder voltar também à Palestina.”

No seu livro, Xavier Abu Eid realça a importância, que “não pode ser quantificada”, do papel desempenhado por numerosos líderes religiosos cristãos palestinianos no movimento de libertação nacional – através da luta armada ou da não violência –, porque todos se sentiam “vítimas do colonialismo”.

Vista da Igreja do Santo Sepulcro (Igreja da Ressurreição), em Jerusalém – 14 de Dezembro de 2023, ano em que as celebrações do Natal foram canceladas por pressão de Israel.
© Latifeh Abdellatif | Middle East Images | AFP | Getty Images

Um dos cristãos a que dá destaque é Ibrahim Ayyad, nascido em Beit Sahur, padre e conselheiro do Patriarcado Latino de Jerusalém. Ayyad lutou contra o Mandato Britânico e a expansão do Sionismo. Em 1951, a Jordânia prendeu-o e condenou-o à morte por suposto envolvimento no assassínio do rei Abdullah I (que alguns palestinianos consideravam um traidor).

Até Ayyad provar a sua inocência, a Santa Sé enviou-o para Beirute, onde haveria de presidir ao Tribunal Eclesiástico da Igreja Católica no Líbano. Nos anos 1970, o sacerdote seria crucial para o estabelecimento dos primeiros laços diplomáticos informais, entre o Papa João Paulo II e Yasser Arafat, dirigente histórico da OLP. Autorizado a regressar à Palestina após os Acordos de Oslo de 1993, Ayyad morreu em 2005 em Beit Jala.

Outra personalidade cristã a que Xavier Abu Eid dedica várias páginas é o bispo da Igreja Anglicana Eliya Khoury. Nascido em Zababdeh, na Cisjordânia, foi deportado para Amã, em 1969, por cooperar com a resistência. A OLP, tentando dar visibilidade aos palestinianos dos territórios ocupados, elegeu-o vice-presidente.

Mas Khoury, “um dos membros mais moderados da organização” e defensor de uma “solução pacífica” do conflito (10), demitiu-se em 1985, quando Abul Abbas, colega na comissão executiva por ele renegado como “traidor à causa”, levou a cabo um ataque terrorista contra o navio Achille Lauro”.

Peregrinos em oração na Igreja da Natividade, construída no local onde, para os cristãos, nasceu Jesus, na cidade de Belém, Cisjordânia ocupada por Israel.
©AFP | Middle East Eye

Foi com a deportação do avô que começou o exílio da família de Hiba Khoury, nativa e residente de Amã, hoje impedida de voltar à Palestina. “Uma das minhas memórias mais queridas é a de umas férias de Verão em 1997, tinha eu 11 anos”, diz-me, por e-mail.

“Viajámos de carro, depois do tratado de paz entre Israel e a Jordânia. Lembro-me de visitar o Santo Sepulcro e a Cúpula do Rochedo, em Jerusalém, de saborear um gelado numa das lojas onde parei para descansar. Lembro-me da casa dos meus avós maternos em Jenin e da casa da minha avó paterna em Birzeit. Lembro-me de comer peixe no restaurante favorito do meu pai, quando ele era miúdo em Jaffa.”

Mas estas memórias são menos vívidas do que Hiba gostaria e, por isso, ela tenta “trabalhar pela Palestina com todos os meios” ao seu alcance. “Não apenas para mim, mas para milhares de outros exilados que não podem voltar”, garante a jovem licenciada em Administração de Empresas e Marketing, pelo Instituto de Tecnologia de Nova Iorque, fundadora da organização Sama Gaza que ajuda crianças, jovens e mulheres a “criar oportunidades e encontrar soluções sustentáveis”, voluntária em projectos ligados à Universidade de Birzeit e à associação de beneficência Taawon, activa em diversos campos de refugiados.

Viver no Reino Hashemita, na margem oriental do rio Jordão, não impede que Hiba Khoury se mantenha em contacto com os palestinianos da margem oriental, cristãos e muçulmanos que “enfrentam crimes de guerra” e “pagam o preço das políticas para criar um Estado exclusivamente judaico”.

Na véspera de Natal de 2015, uma freira ajoelha-se em oração na Gruta da Igreja da Natividade em Belém, cidade da Cisjordânia ocupada, que outrora teve uma significativa maioria cristã.
© Majdi Mohammed | Associated Press (AP)

Incomoda à activista Hiba o facto de a comunidade internacional “não se escandalizar com a horrenda estatística de menos de 1%”de cristãos na Palestina, e por a diáspora não ter direito a regressar, nem para orar nas suas igrejas. “Como poderemos preservar a nossa cultura e a nossa história?”

Ainda assim, Hiba Khoury, Rafi Ghattas, Xavier Abu Eid e Dalia Qumsieh recusam o desespero. “Acredito que, tal como Deus nos ofereceu a salvação, a cruz que carrego conduzirá à liberdade do meu povo”, proclama Ghattas. “Temos de manter a fé na justiça”, aconselha Abu Eid.

“Continuamos a passar a esperança de geração em geração”, regozija-se Dalia. “Porque é a minha casa, dizem as crianças refugiadas que continuam a desenhar a bandeira da Palestina”, exulta Hiba Khoury, feliz por ver cristãos e muçulmanos novamente unidos.” Para ela, uma das maiores demonstrações de unidade foi a cerimónia fúnebre, “bela e triste”, da jornalista Shireen Abu Akleh.

Uma das maiores demonstrações de unidade dos cristãos da Palestina foi o funeral da jornalista Shireen Abu Akleh, católica melquita (fiel à Igreja de Roma), correspondente da estação de televisão Al Jazeera, assassinada por Israel em 22 de Julho de 2017.
© AFP | France24

Repórter da Al Jazeera, a católica melquita Shireen foi morta pelo exército israelita quando cobria uma ofensiva militar no campo de refugiados de Jenin, em 11 de Maio de 2022, comprovam várias investigações independentes.

Ninguém foi julgado. Não foi paga nenhuma indemnização. De Jenin a Jerusalém, durante três dias, mais de 55 mil pessoas prestaram homenagem a uma mulher que todos respeitavam e amavam. Foi o maior funeral na Palestina nos últimos 20 anos.

Xavier Abu Eid e Rafi Ghattas estranharam quatro meses de silêncio da Santa Sé. Shireen era católica melquita, rito fiel a Roma. Só em Outubro é que o Papa Francisco recebeu a família Akleh. “Talvez o Vaticano tivesse razões diplomáticas para agir assim”, desculpou Ghattas. “Não esqueçamos que, em 2014, em visita oficial, o Papa não se importou de irritar Israel e desviou-se da rota para rezar junto ao muro do apartheid”. No ano seguinte, canonizou as duas primeiras santas palestinianas.

Xavier Abu Eid, que no seu livro, dedicado a Shireen Abu Akleh, elogia Bento XV por “ter percebido que o projecto sionista representava uma ameaça aos direitos da população cristã na Palestina”, confessa que esperava agora de Francisco uma “condenação tão vigorosa como lhe merecem outras vítimas”.

A elevação a cardeal o patriarca Pierbattista Pizzaballa (à direita) é interpretada como uma garantia do Vaticano de que “os cristãos palestinianos não serão esquecidos.”
© Hazem Bader | AFP | Getty Images

No entanto, concedem Rafi e Xavier, a decisão de, neste mês de Setembro, elevar a cardeal o patriarca Pierbattista Pizzaballa pode interpretar-se como garantia do Vaticano de que “os cristãos palestinianos não serão esquecidos.”

O Patriarcado Latino de Jerusalém já oferece “as melhores escolas [quase 200, com milhares de alunos], os melhores hospitais e as melhores instituições de assistência a pessoas com deficiência, órfãos, idosos e refugiados”. (11).

Ghattas conhece Dom Pizzaballa desde miúdo: “Damo-nos bem. Ainda hoje o ajudo a celebrar missa na igreja franciscana que frequento. Há 33 anos que ele vive entre nós. Todos o respeitam.” Abu Eid ficou desapontado por, anos antes, a Santa Sé não ter oferecido a púrpura cardinalícia a um palestiniano de Nazaré – o nonagenário Michel Sabbah, agora patriarca latino emérito.

“Para mim, não é um problema que Sua Beatitude Pizzaballa seja italiano, tal como não é um problema que o Santo Padre Francisco seja argentino”, desabafa o jovem Ghattas. Importante é que a Terra Santa vai ter o seu primeiro cardeal. É um sinal de esperança para a Igreja Católica”.

O jovem activista Rafi Ghattas, católico palestiniano de Jerusalém, aqui durante a Jornada Mundial da Juventude, em Portugal. Diz ele: “Eu carrego uma cruz pesada. A cruz de um povo despojado. A cruz de um sistema de apartheid.”
© Gazeta das Caldas
Dalia Qumsieh, advogada palestiniana, cristã de Beit Sahur, na Cisjordânia ocupada por Israel.
© Cortesia de | Courtesy of Dalia Qumsieh
Xavier Abu Eid, autor do livro Rooted in Palestine: Palestinian Christians and the Struggle for National Liberation 1917-2004, aqui ao lado da célebre académica e política Hanan Ashrawi, ambos cristãos, residentes em Ramallah na Cisjordânia ocupada.
© Cortesia de | Courtesy of Xavier Abu Eid
Hiba Khoury – neta bispo da Igreja Anglicana Eliya Khoury, que foi uma ilustre figura na resistência palestiniana, dirigente da OLP – vive exilada em Amã, na Jordânia.
© Cortesia de | Courtesy of Hiba Khoury

(1) Why Many Christians Want to Leave Palestine. And Why Most Won’t, Christianity Today, 4 Agosto 2020.

(2) Bernard Sabella, Palestinian Christians: Challenges and Hopes, “Faith Under Occupation: The Plight of Indigenous Christians in the Holy Land”, Fevereiro 2012.

(3) Jerusalem Institute for Policy Research.

(4) https://enjoybethlehem.com/see/the-old-city-of-beit-sahour

(5) The Tax Resistance at Bayt Sahur, “Journal of Palestine Studies”, Vol. 9, Nº 2, 1990; Ramzy Baroud, Boycott is Historically Palestinian, “The Palestine Chronicle”, 17 Dezembro 2013.

(6) Migration of Palestinian Christians: Drivers and Means of Combating it, Palestinian Center for Policy and Survey Research, 27 janeiro-23 Fevereiro 2023.

(7) The Palestinian Nakba (Catastrophe), Institute for Middle East Understanding, Abril 2023

(8) Xavier Abu Eid, Why Latin America?, This Week in Palestine.

(9) Xavier Abu Eid, Judeh Abu Eid: Defeating Balfour, This Week in Palestine.

(10) Anglican Cleric, Leaving PLO Leadership, Denounces Abbas as ‘Absolute Traitor’, “Los Angeles Times”, 7 Novembro 1985.

(11) Dados da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), 14 Agosto 2023.

Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Setembro de 2023 | This article, now updated, was originally published in the September 2023 edition of the Portuguese news magazine ALÉM-MAR.

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