Iémen: O princípio do fim da guerra?

Durante cinco meses, de 2017 a 2018, Hisham al-Omeisy foi prisioneiro do movimento Houthi. Forçado ao exílio depois de libertado, nunca perdeu a esperança de que ele e a paz voltarão à região outrora conhecida como “Arábia Feliz”. Numa entrevista que me deu, este activista e analista político explica por que o reatamento dos laços entre sauditas e iranianos talvez ajude a minorar o que a ONU classificou de “a pior crise humana do mundo”. (Ler mais | Read more…)

Combatentes houthis são recebidos em apoteose ao chegar ao aeroporto de Sanaa, a capital iemenita, em 14 de Abril de 2023, depois uma troca de mais de 900 prisioneiros com a Arábia Saudita, sob mediação do Comité Internacional da Cruz Vermelha.
© Hani Mohammed | Associated Press | Arkansas Democrat Gazette

Em Abril, quando centenas de prisioneiros de guerra foram libertados, a tempo de celebrarem com as famílias a festa muçulmana de Eid al-Fitr, que assinala o fim do jejum do Ramadão, o iemenita Hisham al-Omeisy emocionou-se. “Que visão para olhos doridos”, escreveu ele no Twitter, onde tem quase 45 mil seguidores. “Ainda me lembro de que como os meus filhos correram para mim quando saí em liberdade. Não há sentimento no mundo que supere o alívio e a felicidade que então sentimos.”

Um destacado activista e analista político que, hoje no exílio, dirige a iniciativa Pathways for Reconciliation in Yemen, do European Institute of Peace (EIP), Omeisy foi preso em 14 de Agosto de 2017, aos 38 anos. Mais de uma dezena de agentes de segurança do movimento Ansar Allah (Partidários de Deus ou Houthi) foram buscá-lo a casa e isolaram-no em local secreto até o libertarem, em 15 de Janeiro de 2018. Nunca foi formalmente acusado. Nunca compareceu perante um juiz, como exige a Constituição iemenita. Nunca teve acesso a um advogado nem a visitas da família.

Assim que, em 2014, se apoderaram de Sanaa, a capital, e da maior parte do Norte do Iémen, os houthis e seus aliados começaram a silenciar os críticos que documentavam os abusos das várias facções beligerantes. Omeisy era uma figura pacífica, mas também uma influente e incómoda “estrela mediática”. A Amnistia Internacional e outras organizações dos direitos humanos relataram que numerosos activistas, jornalistas, líderes tribais e opositores “foram sequestrados, arbitrariamente detidos e torturados”.

Em oito anos, a guerra no Iémen causou, segundo a agência humanitária britânica Oxfam, 12 mil mortos civis e 4 milhões de deslocados, deixando 7,4 milhões de habitantes (25%) a sofrer de desnutrição, incluindo 2 milhões de crianças.
© Yahya Arhab | European Pressphoto Agency | The New York Times

A guerra – civil e por procuração, “a pior crise humana do mundo”, segundo o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas – entrou em Março no seu nono ano, mas Omeisy acredita que ela, “inevitavelmente, chegará ao fim” – sem vencedores.

O ponto de viragem parece ter sido a inesperada decisão da Arábia Saudita de restabelecer laços diplomáticos com o rival Irão. A prioridade da Casa de Saud, constatam observadores regionais, “já não é derrotar os houthis e sim proteger as suas fronteiras” dos ataques (quase mil com mísseis e 350 com drones, que atingiram infra-estruturas cruciais como instalações petrolíferas, aeroportos e bases aéreas) dos rebeldes, presumivelmente apoiados por Teerão.

Numa entrevista que me deu, por e-mail, Hisham al-Omeisy analisa os acontecimentos mais recentes que podem (ou não) oferecer um futuro melhor à região em tempos conhecida como “Arábia Feliz”.

Qasim Shuwe, um rapazinho que seguia num autocarro escolar atingido por uma bomba saudita, quando circulava numa aldeia iemenita, em agosto de 2018, posa para a fotografia junto às campas de 44 colegas que não sobreviveram a esse ataque aéreo.
© Lynsey Addario | The New York Times

Espero que se encontre de boa saúde. Em 2017-2018, juntei-me a todos os que, nas redes sociais, apelaram à sua libertação durante os cinco meses em que esteve sob cativeiro do movimento Houthi. Por que era o senhor considerado uma ameaça?

Antes de mais, gostaria de agradecer a si e aos milhares de pessoas de todo o mundo pela solidariedade e apoio que me ofereceram, a mim e à minha família, durante a minha hora mais sombria. Eu tinha decidido ficar em Sanaa [depois que a guerra civil começou] e lutar dentro do meu país contra a injustiça. Fui testemunha de horrores inimagináveis e queria que o mundo soubesse o quanto o povo estava a sofrer.

Recusei-me a tornar a verdade agradável ou a criticar apenas uma parte, deixando outras incólumes. Por exemplo, eu condenava todos os constantes bombardeamentos sauditas, de casas a orfanatos e hospitais. Mas também criticava os houthis pelas atrocidades que cometiam em Áden e em Taiz, pela sua corrupção e pelas tácticas brutais que usavam até em Sanaa. É um facto que todas as partes deste conflito cometeram crimes contra o meu povo, e quem pagou, de longe, o preço mais elevado foram os civis.

Embora me tivessem tolerado durante algum tempo por eu criticar igualmente a coligação liderada pela Arábia Saudita, os houthis perderam a paciência e raptaram-me. Para ser honesto, eu sabia que esse dia iria chegar, porque já tinha visto outros desaparecerem antes de mim. Não conseguia, porém, ficar quieto. Não se tratava de ser corajoso. Simplesmente, não seria capaz de viver em paz comigo mesmo se fechasse os olhos.

Além da guerra, os desastres naturais e a pandemia de Covid-19 também abalaram profundamente o Iémen. O sistema nacional de saúde entrou em quase total colapso. “A cada duas horas, uma mulher iemenita morre durante a gravidez ou no parto de causas que seriam totalmente evitáveis”, se houvesse clínicas e hospitais a funcionar, diz a ONU
© Lorenzo Tugnoli | The Washington Post

Será possível contar-nos um pouco mais sobre esse pesadelo?

Sim, foi um pesadelo, e é difícil encontrar as palavras certas para descrever o que passei. Vou poupá-los aos pormenores, mas estar naquela masmorra, na minha cela solitária e escura, foi pior do que ser enterrado vivo com mil escorpiões vivos. Não entendo por que alguns dizem o que não nos mata torna-nos mais fortes.

O que posso dizer com toda a certeza é que ficamos mais sábios, cientes do nível de crueldade que o ser humano é capaz, e um pouco mais empáticos em relação ao sofrimento dos outros. Não desejo o que passei aos meus piores inimigos e morreria pelo seu direito a não serem sujeitos a este nível ou tipo de violação de direitos humanos.

Ainda recebe ameaças ou já se sente mais seguro?

Embora as ameaças nunca cessem, são agora menos e encontro-me num lugar seguro [no exílio]. No entanto, não fui nem sou caso único. Ainda há milhares de prisioneiros submetidos um tratamento muito pior.

Pelo menos 21,6 milhões de pessoas – uma em cada quatro – ainda precisam de ajuda humanitária no Iémen. Isso representa 80 por cento do país, onde 2/3 da população também sofrem de insegurança alimentar e têm dificuldade em pôr comida na mesa.
© Valerio Muscella | Care International

Em Abril, mais de 900 prisioneiros foram libertados pelos principais campos beligerantes. Como viu este processo?

Fiquei muito feliz. Precisamos de redobrar esforços para que todos sejam libertados e, mais importante, para que outros não venham a ocupar o seu lugar, pois voltaríamos à estaca zero – neste conflito, há milhões que ainda são reféns e vivem com medo de detenções extrajudiciais e desaparecimentos. Isto tem de parar!

A libertação dos prisioneiros foi entendida como uma medida que ajude a restaurar a confiança enquanto prosseguem iniciativas diplomáticas para pôr fim à guerra. É este também o seu entendimento?

Mais do que um sinal de boa vontade, foi, sim, uma medida para restaurar a confiança, o que ajudará a aliviar o sofrimento de milhares de prisioneiros e das suas famílias. Ajudará também nos esforços com vista a um desanuviamento.

A maioria das guerras termina com trocas de prisioneiros e um perdão geral. No Iémen, esperamos que as várias etapas da libertação e da troca de prisioneiros, em paralelo com outros gestos, possam aproximar as pessoas da mesa das negociações e melhorar as perspectivas do processo de paz.

A economia está de rastos e floresce o mercado negro. O investimento desapareceu, com a insegurança e a fuga de capitais. Os governos rivais em Áden e em Sanaa não partilham as receitas do Banco Central, em particular as provenientes da exploração petrolífera. Os salários dos 1,2 milhões de funcionários públicos são uma tábua de salvação, mas são pagos com atraso.
© Nusaibah Almuaalemi | Reuters

A troca de prisioneiros surgiu um mês depois da súbita decisão da Arábia Saudita e do Irão – dois países cuja rivalidade tem alimentado a guerra – de reatarem os laços bilaterais. Os houthis, por seu turno, têm mantido conversações directas com Riade, sobretudo desde que, em Abril de 2022, o presidente Abd-Rabbu Mansour Hadi, apoiado por Riade e Abu Dhabi, foi marginalizado e substituído por um “Conselho da Liderança Presidencial”, encarregado de negociar “um cessar-fogo permanente”. Como é que explica esta reviravolta?

Para ser honesto, não me surpreendeu a decisão saudita. [O reino] tem vindo a envolver-se positivamente com alguns Estados na região para apagar fogos em várias frentes: na Turquia, na Síria [para reabilitar o ditador Bashar al-Assad], no Qatar. Era natural que fizesse o mesmo no que respeita ao Irão. E, embora seja certo que o Irão exerce influência sobre os houthis, não gostaria de exagerar essa preponderância.

Os houthis [zaiditas, do ramo xiita do Islão a que pertence a maioria dos iranianos] têm a sua própria maneira de ser, as suas agendas locais, ambições expansionistas. E porque qualquer conflito tem de acabar de uma maneira ou de outra – nenhuma guerra dura para sempre -, o contencioso entre houthis e sauditas também tem de chegar ao fim.

Um bloqueio naval imposto pela coligação militar liderada pelos sauditas que, desde 2015, tenta derrubar os houthis, contribuiu para que dezenas de milhares de civis morressem de fome – o Iémen importa 90% do que consome e todos os produtos médicos.
© Abduljabbar Zeyad | Reuters | The Wire

Os sauditas já, há algum tempo, que haviam começado a diminuir as suas operações militares, como parte de uma estratégia de retirada deste pântano em que, para eles, se transformou o Iémen. Um passo em direção ao fim [da guerra] foi a visita a Sanaa [em 9 de Abril, de uma delegação de Riade, recebida no palácio presidencial pelo chefe do Conselho Supremo Político Houthi, Mahdi al-Mashat].

O que as pessoas precisam de entender é que o conflito no Iémen é complexo, multifacetado, com diversas acções envolvidas [incluindo a Al-Qaeda].

Um acordo entre sauditas e houthis poderá acabar com o aspecto regional do conflito, mas não significa, necessariamente, que os conflitos internos irão resolver-se como que por magia. O que é necessário é um processo mais abrangente, holístico e inclusivo, se quisermos mesmo obter uma paz real e duradoura no Iémen.

Omeisy diz que o seu país “é uma nação de muitas cores e origens, diversa e unida pela história”. As políticas de geografia e identidade “são estranhas e nocivas”.
© The Wall Street Journal

Muitos analistas referem que “o sectarismo e a geopolítica” são as “raízes históricas” do conflito. Outros, atribuindo as actuais divisões a forças externas, recordam que, no passado, os iemenitas “costumavam rezar nas mesmas mesquitas sem questionar a doutrina religiosa de cada um”. Qual é a sua opinião a este respeito?

Somos uma nação de muitas cores e origens, diversa e unida pela história da nossa terra. A retórica religiosa e a conversa sobre o sectarismo são fenómenos recentes alimentados por políticas de geografia e de identidade, estranhas e nocivas para nós.

Como muitos compatriotas, cresci sem saber nem me preocupar sobre quais são as doutrinas religiosas dos meus vizinhos. E, sim, íamos às mesmas mesquitas e ainda o fazemos em muitas localidades.

Infelizmente, há quem tente, implacavelmente, criar divisões e reforçar essas fracturas através de narrativas irresponsáveis que só servem objectivos míopes e egoístas, ao colocarem um grupo contra outro no actual conflito. O que temos assistido é a uma batalha pelo poder e pelo controlo, em que a religião é usada como instrumento para dividir e conquistar.

Felizmente, para a maioria dos iemenitas, a retórica de que um grupo é mais justo do que outro, ou de que um tem direito divino a governar sobre o outro, é simplesmente risível e ridículo – sabemos que isso é apenas exercer política por outros meios.

Uma tenente patrulha o quartel de uma unidade feminina de contraterrorismo numa base militar em Sanaa. Cerca de 1500 mulheres servem na polícia e em várias unidades como esta, segundo uma reportagem da National Geographic, que as descreveu como “cruciais numa cultura ultraconservadora que não permite aos homens revistarem mulheres suspeitas ou suspeitos disfarçados de mulheres”.
© Stephanie Sinclair | National Geographic

Há quem tema que a guerra termine com um pacto semelhante ao negociado entre os Estados Unidos e os talibãs no Afeganistão, que excluiu os restantes protagonistas (como mulheres e minorias). Também receia esse desfecho?

Temos de manter a esperança viva de poder dar um passo de cada vez, apesar de todas as adversidades, e de poder emanar um raio de luz no meio da escuridão. A guerra irá, inevitavelmente, terminar um dia.

É óbvio que há muitos cenários e planos que poderão não vir a ser a resolução perfeita – e o que nós mais receamos, em particular, é uma solução que reforce o estatuto predominante de um país fracturado, governado por diversos regimes, brutais e cleptocráticos.

Por isso, insistimos em que os processos sejam inclusivos e transparentes, para reduzir a influência dos senhores da guerra, limitar o nepotismo e a corrupção, assegurar uma democracia participativa e uma cidadania activa. Temos visto, em primeira mão, o que poderes excludentes e elitistas fazem a uma nação. Nenhum iemenita aceitaria viver sob tais condições.

Combatentes houthis envergando uniformes militares posam sobre um veículo blindado capturado ao exército durante confrontos junto da residência do ex-presidente Abed Rabbo Mansour Hadi em Sanaa, 22 de Janeiro de 2015. “A vingança nunca é a resposta certa”, diz Hisham al-Omeisy sobre o futuro.
© Hani Mohammed | Associated Press | TIME

Será que os houthis, que o raptaram e prenderam, vão desistir das suas ambições de dominar todo o Iémen? Há o perigo de uma sociedade maioritariamente tribal, onde “assassínios por vingança sempre foram um problema e onde os ressentimentos nem sempre são perdoados”, ficar permanentemente dividida, porque não pode haver vencedores nesta guerra?

Não é segredo que os houthis há muito têm ambições expansionistas, e que não vão mudar da noite para o dia. Muito sangue tem sido derramado e a guerra aprofundou rancores. E, embora nenhum iemenita possa prometer que, sentindo-se injustiçado/a, não irá procurar vingar-se, a chave aqui é identificar caminhos para a reconciliação.

Nem tudo está ainda perdido. Tivemos lições duras sobre como um ciclo vingativo de violência pode destruir toda a gente e queimar tudo à nossa volta. A vingança nunca é a resposta certa. Mas vão ser necessários esforços sérios para criar dividendos de paz, mecanismos para lidar com as transgressões do passado, uma justiça restaurativa e de responsabilização, a recuperação da confiança, o conserto dos laços quebrados. [É urgente que] todos enterrem o machado de guerra para haver uma visão de bem comum, para que as pessoas se sintam seguras e procurem a felicidade.

Depois de cinco anos no exílio, está agora mais confiante de que poderá em breve regressar ao Iémen?

Sim, não tenho dúvidas de que voltarei a casa. Não abandonarei o meu país nem os meus compatriotas.

O que temos assistido no Iémen é a uma batalha pelo poder e pelo controlo, em que a religião é usada como instrumento para dividir e conquistar.

Hisham al-Omeisy
Hisham al-Omeisy é um influente activista iemenita e analista político que, hoje no exílio, dirige a iniciativa Pathways for Reconciliation in Yemen, do European Institute of Peace (EIP).
© Cortesia de | Courtesy of Hisham al-Omeisy

Um conflito catastrófico

A situação no Iémen “é terrível, e o mais preocupante é que continua a deteriorar-se”, alerta o activista Hisham al-Omeisy. “Estamos a falar de 21,6 milhões de pessoas [uma em cada quatro] – um número impressionante – que precisam de ajuda. Isso representa 80 por cento do país, onde 2/3 da população também sofrem de insegurança alimentar e têm dificuldade em pôr comida na mesa.”

Além disso, acrescenta Omeisy, “faltam serviços básicos, como electricidade ou gestão de resíduos. São muitas as pessoas que não têm acesso a medicamentos e água potável. Onde as infra-estruturas locais foram danificadas, as falhas institucionais são imensas.”

Abdullah Saif Ahmed Numan e o neto, Mohammad, posam para a fotografia no edifício onde vivem no bairro de Al Dawah, que tem servido de linha da frente na dividida cidade de Taiz.
© Claire Harbage | National Public Radio (NPR)

A guerra que, segundo a agência humanitária Oxfam, causou em oito anos 12 mil mortos civis e 4 milhões de deslocados, deixando 7,4 milhões de habitantes (25%) a sofrer de desnutrição (incluindo 2 milhões de crianças), não é o único causador da dor e sofrimento no Iémen.

Também os desastres naturais e a pandemia de Covid-19 abalaram profundamente o país. O sistema nacional de saúde entrou em quase total colapso, refere a ONU. “A cada duas horas, uma mulher iemenita morre durante a gravidez ou no parto de causas que seriam totalmente evitáveis”, se houvesse clínicas e hospitais a funcionar.

Hisham al-Omeisy confirma estes dados funestos: “A economia está de rastos e floresce o mercado negro. O investimento desapareceu, com a insegurança e a fuga de capitais. [Os governos rivais em Áden e em Sanaa não partilham as receitas do Banco Central, em particular as provenientes da exploração petrolífera.] Os salários dos [1,2 milhões] de funcionários públicos são uma tábua de salvação, mas, quando não são pagos, aumentam as dificuldades de milhões de iemenitas.”

Em Bani Mansur, nos arredores de Sanaa, capital do Iémen, esta mãe cansada da guerra deu à sua bebé o nome de Kafaya, que significa “Basta”.
© Alex Potter | The Intercept

Um bloqueio naval imposto pela coligação militar liderada pelos sauditas que, desde 2015, tenta derrubar os houthis, também contribuiu para que dezenas de milhares de civis morressem de fome – o Iémen importa 90% do que consome e todos os produtos médicos.

Omeisy descreve o bloqueio como “uma série de restrições à importação de bens comerciais que estrangularam ainda mais o fluxo de bens essenciais, como medicamentos e gasolina.” O que ele verificou, entretanto, é que alguns destes constrangimentos “têm vindo a diminuir” graças aos esforços diplomáticos em curso.

Quanto a um cessar-fogo, negociado em 2022 pela ONU, Omeisy admite que “houve um certo abrandamento” nos combates, permitindo que fossem “retomados os voos comerciais no aeroporto de Sanaa” e que passem agora “mais navios pelo porto marítimo de Hodeida”.

No entanto, “a crise e as violações dos direitos humanos persistem”. O cerco dos houthis a Taiz, a terceira maior cidade do país, “que eu e muitas pessoas temos criticado desde o início da guerra, ainda não foi levantado”, lamenta o activista.

“As pessoas em Taiz sofrem imensamente porque as suas estradas estão fechadas e continuam a ser bombardeadas. É lamentável que estes problemas continuem relegados para o último lugar na lista de prioridades [das negociações de paz]”.

Crianças iemenitas apresentam a sua identificação para poderem receber alimentos distribuídos por uma associação de beneficiência em Sanaa.
© Hani Mohammed | Associated Press | Los Angeles Times
Cronologia: Unificação, destruição, reconciliação

1990: Apesar de uma vizinhança atribulada nos anos 1970-1980, a República Árabe do Iémen (Norte, tribal), com capital em Sanaa, une-se à República Popular Democrática do Iémen (Sul, marxista), com capital em Áden, dando origem à República do Iémen.

1993: Realizam-se inéditas eleições gerais, livres e multipartidárias. As mulheres participam também pela primeira vez. Ali Abdullah Saleh, que era o presidente do Norte desde 1978, assume a chefia do novo Estado unificado e conquista o apoio do influente grupo xiita zaidita Ansar Allah (Partidários de Deus), também conhecido por Movimento Houthi.

1994: Depois de dois meses de guerra civil em que forças unionistas do Norte derrotam forças separatistas do Sul, é aprovada uma nova Constituição.

2000: Saleh assina um acordo de demarcação de fronteiras com a vizinha Arábia Saudita e tenta desarmar os houthis, aliados no passado.

2004: Furioso com o pacto que Saleh firmou, o líder do Ansar Allah, Hussein Badreddin al-Houthi, inicia uma insurreição. Centenas de rebeldes são presos e ele é assassinado. Sucede-lhe o irmão, Abdul-Malik al-Houthi.

2009: Em Agosto, o exército de Saleh lança a Operação Terra Queimada, para esmagar a rebelião houthi, também envolvida em confrontos transfronteiriços com tropas sauditas.

2010: Em Fevereiro, Saleh e Abdul-Malik al-Houthi aceitam um cessar-fogo, mas pouco depois, o exército iemenita lança uma ofensiva para, simultaneamente, derrotar os houthis e a Al-Qaeda na Península Arábica. 

2011: A “Primavera Árabe” chega ao Iémen. Em janeiro, o povo sai à rua para exigir o fim de 33 anos de regime de Saleh. Este promete não se recandidatar, mas os protestos alastram. A repressão causa cerca de dois mil mortos. Em Abril, o partido de Saleh, Congresso Geral do Povo, concorda em ceder o poder, mas o presidente não. A influente federação tribal Hashid e vários comandantes militares decidem juntar-se à oposição. Confrontos começam em Sanaa, a capital. Em Junho, Saleh é gravemente ferido num atentado bombista e vai tratar-se à Arábia Saudita. Em Setembro, regressa ao palácio presidencial, mas só em Novembro, assina o acordo de transferência de poder. Sucede-lhe o “número dois”, Abd Rabbuh Mansour Hadi, que forma um “governo de unidade” e, dois anos depois, vence eleições presidenciais, sem adversários, para dois anos de mandato.

Apoiantes do presidente, Ali Abdullah Saleh, exibem cartazes com a sua fotografia e entoam slogans pró-regime durante uma manifestação em Sanaa, 14 de Outubro de 2011.
© AFP | Getty Images | CNN

2014: Em Fevereiro, um painel presidencial aprova um plano de transição para que o Iémen se organize numa federação de seis regiões. Entre Setembro e Outubro, os houthis assumem o controlo da maior parte de Sanaa e da cidade portuária de Hodeida, no Mar Vermelho.

2015: Em Janeiro, os houthis colocam Hadi sob prisão domiciliária, em Sanaa, e obrigam-no a demitir-se. No mês seguinte, Hadi foge para Áden, onde se proclama “presidente legítimo”. Em Março, o Estado Islâmico (Daesh) reivindica os seus primeiros atentados bombistas suicidas em mesquitas xiitas em Sanaa. Os houthis, que controlam o Norte, iniciam uma ofensiva contra as tropas de Hadi no Sul. Este foge para a Arábia Saudita. Pouco depois, os houthis conquistam Taiz, a terceira maior cidade do país, que continua por eles sitiada. Em Março, uma coligação de Estados árabes, liderada por Riade (incluindo os Emirados Árabes Unidos, o Egipto, Marrocos, a Jordânia, o Bahrein, o Sudão e o Kuwait), lança a Operação Tempestade Decisiva, em apoio do presidente destituído. A coligação bombardeia, por via aérea, alvos houthis, mas também mobiliza soldados para o terreno e impõe um bloqueio naval. A guerra merece o apoio dos EUA, que fornecem armas aos sauditas. Em Maio, o ex-presidente Saleh estabelece uma aliança formal com os houthis.

2017: Em Maio, os houthis clamam responsabilidade por um ataque com mísseis contra a Arábia Saudita, que atingem Riade, a capital. Organizações humanitárias alertam que a guerra está a causar milhares de mortos e feridos entre civis, a deixar milhares em risco de fome, além de uma epidemia de cólera. Em Dezembro, após realinhar com os sauditas, Saleh é morto em confrontos entre as suas forças e rebeldes houthis.

2018: Em Janeiro, o Conselho de Transição do Sul (STC, na sigla inglesa), um movimento separatista que, apoiado pelos Emirados Árabes Unidos, quer restaurar o antigo Iémen do Sul independente, conquista Áden e ocupa a sede do governo de Hadi. A oposição internacional às operações da coligação liderada pelos sauditas aumenta depois de um ataque aéreo matar mais de 20 civis numa festa de casamento. Em Maio, tropas dos Emirados entram na ilha de Socotorá e ocupam o aeroporto e porto marítimo, para irritação do Governo pró-saudita de Hadi. Em Julho, a coligação chefiada por Riade lança uma ofensiva no porto de Hodeida, agravando o drama humano na região. Os protestos internacionais sobem de tom quando um ataque aéreo saudita contra um autocarro escolar, causa 40 mortos, a maioria crianças.

Um cemitério em Sanaa para vítimas da guerra: pelo menos 19.200 civis, incluindo mais de 2300 crianças, foram mortos ou mutilados apenas em resultado dos ataques aéreos da coligação liderada pelos sauditas, entre 2015 e 2021. No mesmo período, o conflito causou também cerca de 4 milhões de deslocados internos e deixou ainda mais de 23,4 milhões de iemenitas a necessitar de assistência humanitária e outros 19 milhões a enfrentar insegurança alimentar.
© Yahya Arhab | EPA | The New York Times

2019: Em Junho, os houthis intensificam os ataques contra território saudita, lançando mísseis contra instalações petrolíferas e aeroportos. Em Julho, os Emirados dizem ter concluído a retirada das suas tropas do Iémen, mas, em Agosto, os aliados separatistas do STC conquistam as províncias de Áden, Abyan e Shabwa. Em Setembro, supostamente com “ajuda técnica” do Irão, os houthis lançam a Operação Vitória de Deus; atacando com drones instalações petrolíferas na Arábia Saudita, reduzindo para metade a capacidade de produção do reino. Em Novembro, tentando pôr fim aos combates no Sul, Riade e Abu Dhabi forçam um acordo de partilha de poder entre o governo de Hadi e o STC.

2020: Em Novembro, sauditas e houthis iniciam negociações secretas, com Riade a mostrar interesse num cessar-fogo e em pôr fim aos bloqueio aéreo e naval do Iémen, em troca da criação de uma zona-tampão entre as suas fronteiras e os territórios controlados pelos houthis. No mesmo mês, os houthis disparam um míssil conta a cidade costeira saudita de Jidá. Em Dezembro, o STC e o governo de Hadi formalizam um acordo de partilha de poder, em Áden.

2021: Em Janeiro, os houthis já têm sob sua alçada 70-80% da população iemenita. Em Fevereiro, a Administração Biden põe fim ao apoio dos EUA à guerra saudita no Iémen. Os houthis iniciam uma ofensiva em Marib, o último reduto das tropas de Hadi no Norte, nas proximidades dos mais ricos campos de petróleo do país e onde se abrigam um milhão de deslocados internos. Em Março, os rebeldes voltam a atacar, com mísseis e drones, instalações petrolíferas, aeroportos e bases aéreas sauditas. Riade retalia, mas também sugere um cessar-fogo, que inclua a reabertura do porto marítimo de Hodeida e do aeroporto de Sanaa. Os houthis rejeitam e exigem o levantamento total do bloqueio imposto pelos sauditas. Em Agosto, a Administração Biden retira os seus mais avançados sistemas de mísseis da Arábia Saudita. Em Agosto, o Sultanato de Omã tenta mediar um acordo entre sauditas e houthis. Em Setembro, um ataque da coligação chefiada pelos sauditas mata o presidente de facto do Iémen, o comandante supremo houthi, Saleh Ali al-Sammad.  Em Novembro, as forças da coligação abandonam as posições em Hodeida, permitindo que os rebeldes reconquistem a cidade.

2022: Em Janeiro-Fevereiro, os houthis lançam uma série de ataques sem precedentes contra os Emirados e a Arábia Saudita, apoderando-se de um navio de Abu Dhabi no Mar Vermelho. A coligação bombardeia Sanaa e Hodeida. Em Março, a Arábia Saudita anuncia o fim de todas as suas operações militares no Iémen, a partir do dia 30. Em Abril, pela primeira vez desde 2016, a ONU consegue convencer os beligerantes a aceitarem um cessar-fogo – que, embora frágil, se mantém. Aparentemente sob pressão de Riade e Abu Dhabi, o presidente Hadi demite o vice-presidente, Ali Mohsen al-Ahmar, detestado pelos houthis, e transfere o poder para um novo “Conselho da Liderança Presidencial”. A Arábia Saudita e os Emirados prometem 3000 milhões de dólares para apoiar a economia iemenita, à beira do colapso. Os houthis assinam um “plano de acção” para impedir o recrutamento de crianças para a guerra – um responsável admitiu que o movimento integrou pelo menos 18 mil no seu exército, algumas com 10 anos de idade.

2023: Em Março, a Arábia Saudita e o Irão concordam em restabelecer os laços bilaterais, renovando a esperança no processo de paz. Em Abril, emissários sauditas e omanitas visitam Sanaa para negociar – no palácio presidencial e com o comandante supremo dos houthis – um cessar-fogo permanente. No mesmo mês, rebeldes e tropas governamentais libertam, durante três dias, mais de 900 prisioneiros de guerra.

 Fontes:

Arab Center Washington D.C.; Al-Jazeera; Reuters

Os iemenitas esperam pelo fim da guerra destruiu o seu país, em tempos conhecido como “Arábia Feliz”.
© Getty Images | Al Jazeera

Estes artigos foram publicados na edição de Maio 2023 da revista ALÉM-MAR | These articles were published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, May 2023 edition.

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