“Tirem as mãos de África!”

Sim à esperança, à reconciliação e ao perdão. Não à guerra, ao ódio, à exploração. Ninguém ficou indiferente às mensagens do chefe da Igreja Católica nos seis dias que duraram as suas visitas à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul. Para avaliar o impacto das palavras proferidas do Papa Francisco na sua quinta viagem apostólica a este continente, entrevistei o padre jesuíta congolês Toussaint Kafarhire Murhula e o bispo comboniano de Rumbek, Christian Carlassare. (Ler mais | Read more…)

Na sua visita à República Democrática do Congo, o chefe da Igreja Católica destacou o “carácter sagrado e inalienável da dignidade humana, a reivindicação da integridade territorial, que implica independência, soberania e autodeterminação”.
© Yara Nardi | Reuters | Rappler

Toussaint Kafarhire Murhula testemunhou “um momento realmente único”, uma paradoxal demonstração de júbilo num país em sofrimento. No dia 31 de Janeiro, ao longo de 27 quilómetros, desde o aeroporto internacional de Ndjili até ao Palais da la Nation (sede da presidência), no centro de Kinshasa, “multidões de fiéis católicos erguendo bandeiras, tambores, apitos, estandartes e muito mais” festejaram e agradeceram a muita ansiada visita do Papa Francisco.

Padre jesuíta e poeta, teólogo e cientista social, filósofo e crítico literário, nascido na República Democrática do Congo (RDC) – o maior país católico de África (mais de metade dos 95 milhões de habitantes) –, Murhula compreende “a alegria de toda a nação congolesa”.

Porque “nunca antes, nos últimos cinquenta anos, alguém tão importante se dirigira a este povo com gentileza, respeito, amor e compaixão imensos”, disse-me, numa entrevista por e-mail.

O Papa Francisco à chegada ao aeroporto de N’dolo, em Kinshasa, a capital congolesa, onde celebrou missa para quase um milhão de pessoas, em 1 de Fevereiro de 2022.
© AFP | eyeradio.org

“Pessoalmente, exultei quando ouvi o Papa pronunciar estas palavras: Enquanto vós, congoleses, lutais para salvaguardar a dignidade e a vossa integridade territorial, contra tentativas condenáveis de o fragmentar, venho até vós, em nome de Jesus, como um peregrino da reconciliação e da paz. Muito desejei estar aqui e, finalmente, venho trazer-vos a solidariedade, o afecto e o consolo de toda a Igreja, e aprender com o vosso exemplo de paciência, de coragem e de luta.”

Devido a problemas de saúde, a viagem apostólica de Francisco à RDC e ao Sudão do Sul, inicialmente agendada para 2022, foi protelada – mas não cancelada. Os preparativos foram retomados no ponto onde haviam sido interrompidos, mas agravou-se a insegurança no Leste, onde estão activos mais de 120 grupos armados e milícias, o mais brutal dos quais o Movimento 23 de Março (M23), e Goma, capital da província do Kivu-Norte, ficou de fora do itinerário.

Soldados congoleses patrulham a povoação de Kibumba, nas proximidades de Goma, uma das mais fustigadas pelos rebeldes do grupo M23. O recrudescimento dos combates impediu que o Papa se deslocasse à região, mas as vítimas da violência foram ter com ele a Kinshasa.
© Guerchom Ndebo | AFP | France 24

“Muitas pessoas pensaram que o recomeço dos combates por parte do M23 visou dissuadir o Papa de se deslocar à RDC”, observou Murhula, director do Centre Arrupe pour la Recherche et la Formation (CARF), um think-tank com sede na cidade de Lubumbashi, cuja missão é difundir uma visão cristã do desenvolvimento económico, sócio-político e cultural. “Talvez haja alguma verdade nisto. A visita permitiria lançar alguma luz sobre estas guerras ‘fabricadas’ no Congo”.

Os grupos rebeldes, alguns supostamente apoiados pelos vizinhos Ruanda e Uganda, saqueiam e destroem aldeias, assassinam os moradores, violam mulheres, roubam gado, pilham ouro, diamantes, lítio, cobalto e outras riquezas.

Desde a “Grande Guerra de África” de 1998-2002, que causou cerca de 2 milhões de mortos, ascendem a mais de 5,6 milhões os deslocados internos na RDC – número incomparável no continente –, aos quais se juntam mais de meio milhão de refugiados.

Fiéis saúdam o Papa Francisco, no aeroporto de N’dolo, em Kinshasa, em 1 de Fevereiro de 2022. “Nunca antes, nos últimos cinquenta anos, alguém tão importante se dirigira a este povo com gentileza, respeito, amor e compaixão imensos”, diz o padre jesuíta congolês Toussaint Kafarhire Murhula.
© Moses Sawasawa | Associated Press | NBC News

O alheamento do mundo perante o que se passa no Leste do antigo Zaire chocou o arcebispo de Kinshasa, cardeal Fridolin Ambongo, que, antes da visita do Papa, lamentou: “Mobilizam-se vastos meios para restaurar a ordem na Ucrânia [depois da invasão russa], mas no Congo a comunidade internacional diz que é impotente. Isso é uma injúria.”

O Papa, de 86 anos e precisando da ajuda de uma bengala ou de uma cadeira de rodas, não se deixou intimidar. Não foi a Goma, mas vítimas da violência em Goma foram ao seu encontro. Nas redes sociais, alguns criticaram-no por não ter sido mais explícito a identificar os culpados pelos crimes do passado e do presente, mas o sacerdote-académico que preside à African Studies Association of Africa (ASAA) e é membro da Rede Pastoral e de Teologia Católica Pan-Africana, defende-o: “A missão do Papa é espiritual e não política. Toda a gente de boa fé sabe quem são os responsáveis.”

A mensagem de Francisco “foi clara, inequívoca e directa”, insiste Murhula, dando como exemplo o seu primeiro discurso, quando se encontrou no Palácio da Nação com o presidente, Félix Tshisekedi, membros da sociedade civil e do corpo diplomático.

Francisco num encontro com jovens no Estádio dos Mártires, em Kinshasa, em 2 de Fevereiro de 2022. © Ciro Fusco | EPA | EFE | citizen.co.za

Enaltecendo a beleza natural do país que o acolheu, o visitante declarou: “É como um continente no grande continente africano. Parece que toda a terra respira. Se a geografia deste pulmão verde [tem a segunda maior floresta tropical, depois da Amazónia] é tão rica e matizada, já a história não se mostrou igualmente generosa. O vosso país é um verdadeiro diamante da Criação, mas todos vós sois infinitamente mais preciosos do que qualquer bem que brote deste solo fecundo.”

A seguir, o Papa fez um apelo veemente: “Tirem as mãos da República Democrática do Congo, tirem as mãos da África! Não sufoquem África: não é uma mina para explorar, nem uma terra para saquear. Que África seja protagonista do seu destino! (…) Não podemos habituar-nos ao sangue que, há décadas, corre ceifando milhões de vidas, sem que muitos o saibam. Seja conhecido tudo o que acontece aqui.”  

“São imagens revolucionárias”, maravilha-se Murhula. “Sobretudo quando nos habituámos a chavões e estereótipos negativos sobre a RDC. Que mais poderíamos querer ouvir nesta conjuntura crítica da história da nação? Era tudo o que o povo queria escutar.”

Depois de saudar os fiéis congoleses com as palavras bondéko (fraternidade) e esengo (alegria), o Papa Francisco relembrou-os de que, como cristãos, são chamados a “quebrar o ciclo da violência e a desmantelar as maquinações do ódio”.
© Daniel Ibanez | CNA | aciaafrica.org

Francisco não destacou apenas o “carácter sagrado e inalienável da dignidade humana, a reivindicação da integridade territorial, que implica independência, soberania e autodeterminação”, mas expôs também “a ingerência de vários actores internacionais, incluindo potências ocidentais, multinacionais e peões africanos, instrumentalizados para balcanizarem o Congo, influenciar e desestabilizar o seu destino.”

No segundo dia da visita papal, em 1 de Fevereiro, mais de um milhão de pessoas – e não apenas as “cerca de 120 mil” esperadas pelo Vaticano – assistiram a uma missa no aeroporto de N’Dolo, em Kinshasa, celebrada segundo o Missal romano para as dioceses do Zaire, em francês, tshiluba, lingala, suaíli e kikongo. Foi feriado nacional. Com as escolas fechadas e tolerância de ponto para os trabalhadores, as estradas tornaram-se ainda mais intransitáveis numa metrópole de 17 milhões de habitantes.

Muitas pessoas saíram de casa às 3-4 horas da madrugada, ou dias antes, algumas caminhando durante vários quilómetros, vindas de outras cidades ou países vizinhos para estarem mais perto do pape François. Sob um sol tórrido, homens e mulheres, crianças e jovens, leigos e religiosos formaram uma “maré humana”, rezando “pela paz e a justiça”, numa cerimónia repleta de canções e instrumentos musicais, hinos e danças tradicionais.

Na visita ao antigo Zaire, o Papa fez um apelo, quase uma intimação: “Tirem as mãos da República Democrática do Congo, tirem as mãos da África! Não sufoquem África: não é uma mina para explorar, nem uma terra para saquear. Que África seja protagonista do seu destino!
© Jerome Delay | Associated Press

De um grande altar vermelho e branco, após saudar os fiéis com as palavras bondéko (fraternidade) e esengo (alegria), o Papa relembrou-os de que, como cristãos, são chamados a “quebrar o ciclo da violência e a desmantelar as maquinações do ódio”. Ainda mais comovente seria o seu encontro, no salão da nunciatura apostólica, com as vítimas do terror no Leste.

“Perante a violência desumana”, disse Francisco, “só nos resta chorar, sem palavras, permanecendo em silêncio. Bunia, Beni-Butembo, Goma, Masisi, Rutshuru, Bukavu, Uvira… são lugares que os meios de comunicação internacionais quase nunca mencionam. Ali e noutros lugares, tantos irmãs e irmãos nossos, filhos da mesma humanidade, são reféns da arbitrariedade do mais forte, de quem tem na mão as armas mais potentes, armas que continuam a circular.”

O Papa apresentou uma proposta: “recomeçar com dois nãos – à violência e à resignação e dois sins” – à reconciliação e à esperança. Porque “o ódio é uma blasfémia que corrói os corações”, e porque é necessário “combater o desânimo, o desalento e a desconfiança que nos levam a crer ser melhor suspeitar de todos e viver separados do que dar as mãos e caminhar juntos”.

Freiras congolesas durante um encontro de oração presidido por Francisco na Catedral de Notre Dame, em Kinshasa, 2 de Fevereiro de 2023.
© Hugh Kinsella-Cunningham | The Nation

Antes de partir para o Sudão do Sul, o Papa encontrou-se com mais de 65 mil jovens, no Estádio dos Mártires em Kinshasa, pedindo-lhes que sejam “sonhadores indomáveis de um mundo mais unido”. Recebeu também em audiência padres e líderes jesuítas na linha da frente do trabalho da Igreja na RDC, que administra escolas e universidades, hospitais e clínicas, rádios e televisões, jornais e outras publicações.

A igreja congolesa, em particular a sua conferência episcopal (CENCO) “tem falhas como todas as instituições”, reconhece Toussaint Murhula, mas “conduziu a nação congolesa à democratização”, depois da ditadura de Mobutu Sese Seko, e mantém-se vigilante. Sobretudo em tempo de eleições, como as de Dezembro próximo, porque a “esfera pública morreu, ninguém respeita as leis, a oposição está enfraquecida e os ricos podem comprar a salvação”.

O Papa saúda o bispo Christian Carlassare e uma jovem da diocese de Rumbek, junto à Catedral de Santa Teresa, em Juba, capital do Sudão do Sul, 4 de Fevereiro de 2022 .
© National Catholic Register | Vatican Media

Em Juba, capital da mais jovem nação do mundo, o bispo comboniano da diocese de Rumbek, Christian Carlassare, conseguiu finalmente concluir a peregrinação “Caminhando pela Paz” (cerca de 200 quilómetros a pé), que teve de pôr em pausa em 2022, quando Francisco adiou a sua visita.

Tal como o pontífice, que para aqui viajou acompanhado do Arcebispo de Cantuária, Justin Welby, e do Moderador da Assembleia-Geral da Igreja da Escócia, Iain Greenshields, numa missão ecuménica sem precedentes, também o italiano Carlassare se juntou a um grupo de “60 jovens de diferentes clãs e confissões religiosas” para, durante nove dias, partindo da capital do Estado dos Lagos e parando em diversas comunidades cristãs ao longo do trajecto, chegar a Juba, a 2 de Fevereiro.

O encontro com o Papa “foi um momento muito emocionante”, disse Carlassare ao site Vatican News, recordando o momento em que o pontífice agradeceu àqueles jovens “o exemplo” que deram a outros que há muito tempo “marcham com as espingardas às costas”, sem nunca terem recebido “o empurrão certo” para seguir o “caminho renovado da paz”.

A mais jovem nação do mundo ainda não se libertou da guerra civil, que causou cerca de 400 mil mortos, nem do tribalismo, nem da pobreza, apesar de rico em petróleo.
© Pablo Tosco | Oxfam

O Sudão do Sul, que se tornou independente do Sudão, em 2011, mas ainda não se libertou da guerra civil (400 mil mortos), nem do tribalismo, nem da pobreza, apesar de rico em petróleo, “tem uma história de deslocados em movimento, que cruzam o país de um lado ao outro”, lembra Carlassare. “Quantas pessoas [estima-se em dois milhões] não tiveram de deixar as suas casas e caminhar durante quilómetros, dias e dias, para chegar sabe-se lá onde, em busca da sobrevivência?”

Às cerca de cem mil pessoas que, em 5 de fevereiro, assistiram à missa num estádio com o nome e em memória do herói nacional John Garang, o Papa fez um novo apelo: “Mesmo que os nossos corações sangrem pelos males que sofremos, recusemos, de uma vez por todas, pagar o mal com mal.”

O apelo destinou-se igualmente aos líderes rivais do país: o presidente, Salva Kiir (católico, etnia Dinka), e o vice-presidente, Riek Machar (presbiteriano, etnia Nuer), mas também forças da oposição, signatários de um acordo de paz, cujas cláusulas continuam por aplicar, na sua maioria, desde há cinco anos.

Segundo a UNICEF, 75% das raparigas no Sudão do Sul não vão à escola, porque os pais preferem casá-las antes dos 18 anos, para poderem receber os dotes.
© Windle Trust International

É preciso “superar as antipatias e as aversões que com o tempo se tornam crónicas e arriscam colocar tribos e grupos étnicos uns contra os outros”, aconselhou Francisco. “Temos de aprender a aplicar o sal do perdão nas nossas feridas. O sal queima, mas também cura.”

Entre os mais indefesos nos conflitos que persistem em várias regiões do país, estão mulheres e meninas, a maioria dos deslocados, e o Papa não as esqueceu, ordenando os devidos respeito e protecção. Segundo a UNICEF, 75% das raparigas não vão à escola, porque os pais preferem casá-las antes dos 18 anos, para receber os dotes. O Sudão do Sul tem também a maior taxa de mortalidade materna do mundo.

Numa conversa que tivemos por WhatsApp, o bispo Carlassare exalta “o contributo importante” do Papa para que o Sudão do Sul se liberte da “armadura do passado” e escolha um futuro diferente. “Por um lado, ele pediu às instituições que se coloquem ao serviço dos mais vulneráveis, embora estas enfrentem grandes desafios sem soluções fáceis: fazer regressar os deslocados e refugiados, dar oportunidade a eleições democráticas, juntar as milícias num exército nacional unificado, promover o desarmamento e a segurança… além de fornecer serviços básicos.”

Devido às alterações climáticas, há três anos que as cheias do Nilo deixam submersas vastas áreas do Sudão do Sul que antes eram habitáveis.
© Peter Caton | Action Against Hunger | The Telegraph

No Sudão do Sul, o custo de vida é muito elevado e a moeda quase não tem valor, observa Dom Carlassare. Só quem trabalha para as agências humanitárias estrangeiras tem um bom salário. Devido às alterações climáticas, há três anos que as cheias do Nilo deixam submersas vastas áreas, antes habitáveis. As pessoas vivem em situação de trauma permanente.

“Não é um caminho fácil”, sublinha o missionário comboniano que, em 2021, sobreviveu a um atentado pouco depois da sua nomeação pelo Papa Francisco. “Na sua visita, o Santo Padre não se dirigiu apenas às instituições (e às pessoas que possam representar as elites), mas a toda a nação [dizendo]: é preciso um esforço conjunto para a paz na solidariedade, um esforço das bases; não à violência e sim ao diálogo; as armas não podem falar mais alto; mais confiança e coesão social; não mais abusos e sim respeito pela dignidade humana, em especial das mulheres; não mais manipulação dos jovens e sim educação e possibilidade de se exprimirem positivamente.” Com o Papa, diz Carlassare, a Igreja do Sul do Sudão é chamada a estar ao serviço da justiça, da paz e da reconciliação. Não está num sprint, mas numa maratona.”

Oração ecuménica presidida pelo Papa no Mausoléu John Garang, em Juba, 4 de Fevereiro de 2023. É preciso “superar as antipatias e as aversões que com o tempo se tornam crónicas e arriscam colocar tribos e grupos étnicos uns contra os outros”, aconselhou Francisco. “Temos de aprender a aplicar o sal do perdão nas nossas feridas. O sal queima, mas também cura.”
© Paul Haring | CNS | America Magazine

 “África tem um papel importante a desempenhar” e não apenas para a Igreja, frisa Carlassare. “O último sínodo considerou este continente o pulmão do mundo. A visão de São Comboni, que vislumbrou um futuro importante para África, está a tornar-se realidade.”

Quanto às fracturas expostas pelo processo sinodal – “o momento mais decisivo da igreja” (ver entrevista abaixo com Stan Chu Ilo) –, o bispo de Rumbek desvaloriza-as: “Em África, não vejo categorias de conservadores e progressistas, ou elas assumem diferentes cores e inquietações. Em África, são muito importantes os valores tradicionais, por isso, a Igreja tem raízes profundas assentes na doutrina e na disciplina. Por outro lado, África ensina-nos formas diversas de entender a vida, a comunidade, o discipulado.”

“A diversidade na Igreja não deve promover divisões, mas responsabilidade, diálogo e respeito”, conclui Carlassare. “O Papa Francisco não é conservador nem progressista. Apenas está aberto ao diálogo sobre temas a que no passado poucos prestavam atenção. O importante é saber se, na Igreja, estamos mais preocupados com a instituição, as normas e as tradições humanas ou se oferecemos a nossa vida a Cristo e ao Evangelho.”

OS ENTREVISTADOS
Toussaint Kafarhire Murhula, padre jesuíta e poeta, teólogo e cientista social, filósofo e crítico literário, nascido na República Democrática do Congo, preside à African Studies Association of Africa (ASAA) e é membro da Rede Pastoral e de Teologia Católica Pan-Africana
© Cortesia de | Courtesy of Toussaint Kafarhire Murhula
O bispo comboniano Christian Carlassare (à esq.) com alguns membros da sua comunidade na diocese de Rumbek, Sudão do Sul.
© Vatican News

“Os Africanos não são mais religiosos por causa do Catolicismo, mas são mais católicos porque são religiosos”

Na sua viagem ao antigo Zaire e ao novo Sudão do Sul, o Papa Francisco foi ao encontro de “pessoas de fé que não desistem da esperança”, diz-me Stan Chu Ilo, académico que se tornou num dos maiores especialistas do Catolicismo no continente africano. É aqui, onde se “reinventa e reinterpreta o Cristianismo com uma nova linguagem e vigor espiritual”, que está “a grande esperança” da Igreja.

© Issouf Sanogo AFP | Getty Images | USA Today

Professor de Cristianismo Mundial e Estudos Africanos no Centro para o Catolicismo Mundial e Teologia Intercultural na Universidade DePaul, em Chicago, Illinois (EUA), o padre Stan Chu Ilo, é considerado uma eminência no estudo das culturas e tradições religiosas em África.

Na Universidade de Durham, na Inglaterra, Ilo é professor honorário de Religião e Teologia, e no Instituto de Estudos Africanos da Universidade da Nigéria, país onde nasceu, é investigador visitante. É ainda coordenador da Rede Pastoral e de Teologia Católica Pan-Africana (PACTPAN) e do projecto Doing Theology from the Existential Peripheries, do Dicastério da Santa Sé para o Desenvolvimento Integral.

Entre os vários livros que coordenou, para os quais contribuiu e de que é autor, destaque para The Church and Development in AfricaWealth, Health, and Hope in African Christian Religion; A Poor and Merciful Church: The Illuminative Ecclesiology of Pope FrancisHandbook of African Catholicism; e Ecological Ethics for Human Flourishing; An African Commentary on Laudato Si’. O sacerdote e académico deu-me esta entrevista por e-mail.

© Catholic Agency for Overseas Development (Cafod) | The Tablet

Recebido efusivamente em Kinshasa e em Juba, o Papa Francisco condenou séculos de exploração, os massacres, as violações, a destruição de aldeias, “o veneno” do ódio e da guerra. De todas as suas mensagens, qual a que captou mais a sua atenção?

O Papa Francisco dirigiu mensagens muito fortes e proféticas a três grupos de pessoas. O primeiro, o das potências estrangeiras, principalmente ocidentais, e da China, a quem intimou tirem as mãos de África. E isto é tão mais verdade quanto, no caso do Congo, tem sido uma história longa e triste de escravatura, colonialismo brutal sob os Belgas e exploração contínua por parte do Ocidente.

O mesmo se pode dizer, até certo ponto, em relação ao Sudão do Sul. As guerras travadas até hoje naqueles dois países são alimentadas por actores externos que obtêm imensos proveitos com armas que fornecem. Sempre que há uma guerra, alguém lucra com ela. A guerra é um negócio chorudo. Milhões de pessoas morrem e cometem-se genocídios. Não há responsabilização devido aos interesses económicos estrangeiros.

© The Wall Street Journal

No segundo grupo estão os líderes africanos. No Congo e no Sudão, o que temos visto nas últimas cinco décadas? Uma sucessão de ditadores, corruptos e opressores, que exploram o seu próprio povo e, lamentavelmente, continuam a agir como os colonialistas ocidentais, desviando recursos e travando guerras destrutivas contra populações, segundo linhas étnicas e regionais.

Os jogos de poder no Congo e no Sudão são sinais do fracasso de Estados pós-coloniais em África, incapazes de desenvolverem instituições inclusivas e estruturas democráticas, de promover o bem comum, a boa governação e a justiça.

O terceiro grupo para quem o Papa falou foi o das vítimas da guerra: pobres, mulheres, crianças. Aos milhões de Congoleses e Sul-Sudaneses que vivem em campos de deslocados internos, Francisco ofereceu uma mensagem de conforto e esperança, de que a Igreja está a seu lado e Deus está com eles. Também pediu justiça para os que sofrem a violência, as mulheres violadas e os jovens a quem negam o futuro.

Em última análise, todas estas mensagens foram ao cerne da questão: não pode haver desenvolvimento nem prosperidade humana enquanto perdurar a guerra, o ódio, a corrupção. Não pode haver paz se as causas da guerra e do ódio não forem eliminadas.

© Victoria Arthur

Perante a injustiça e os abusos, disse o Papa, a Igreja “não pode ser neutral”. Como estudioso do Catolicismo Africano, consegue comparar as igrejas na RDC e no Sul do Sudão, a influência política que exercem, a missão social que realizam?

No Congo, a Conferência Episcopal (CENCO) tem sido a voz mais forte na defesa dos pobres e das vítimas da guerra. Não sei onde estaria hoje o Congo se os seus bispos não se tivessem insurgido contra a classe política e uma liderança corrupta que tantas vezes transformaram o país num projeto criminoso, ao ambicionar o poder vitalício, como se a presidência e o Estado fossem bens pessoais e o país o seu feudo.

No Sudão do Sul, esta situação repete-se. Os dois principais gladiadores, o presidente, Salvar Kiir, e o vice-presidente, Riek Machar, não gostam um do outro e usam as suas diferenças étnicas como arma para dividir o povo. Embora seja uma das nações mais pequenas de África, em termos de população, e a mais jovem, este é um país traumatizado pela violência e a opressão. O povo empobreceu neste Estado falhado.

© Center for Religion and Civic Culture

A Igreja funciona no Sudão do Sul como um bálsamo que cura. É um oásis de esperança, facilitando acesso à educação, a cuidados de saúde e à alimentação os sul-sudaneses, incluindo aos que vivem em campos de refugiados em Adjumani, no norte do Uganda.

No Sudão do Sul, a Igreja nunca foi neutral. Os bispos colocaram-se ao lado dos pobres, dos deslocados, dos que lutam pela paz. Destaco o projeto singular do bispo emérito de Torit, Paride Taban, que criou a “Aldeia da Santíssima Trindade de Kuron” [no estado de Equitoria Oriental], onde são bem-vindas todas as pessoas de diferentes tribos, raças e religiões, para demonstrar que que é possível viver juntos em paz, apesar das diferenças religiosas, políticas, étnicas ou raciais.

© Tom Perna

Na RDC, em particular, será que a ascensão das igrejas protestantes, pentecostais ou evangélicas ameaça a posição central da Igreja Católica? Qual o peso específico das igrejas fundadas por Africanos?

O Congo sempre foi terreno fértil para igrejas africanas indígenas e independentes. Tenho um amigo teólogo que, há alguns anos, me disse ter plantado no Congo mais de 300 igrejas nos últimos dez anos. Um dos primeiros financiadores das igrejas africanas, Simon Kimbangu [1887-1991], começou a sua missão no Congo, onde a igreja hoje chamada Kimbanguista se vangloria de ter mais de um milhão de membros.

As novas igrejas que o meu amigo e outros estão a fundar no Congo pertencem à tradição pentecostal e são designadas localmente como Églises de Réveil [Igrejas do Despertar]. Ganharam muita visibilidade e representam um desafio para a Igreja Católica em termos de mensagem e influência.

Muitas delas são fundadas por líderes sem uma sólida formação teológica e muitas vezes aproveitam-se da credulidade de pessoas simples, em grande sofrimento e dor, mais vulneráveis a qualquer religião que lhes ofereça esperança, mesmo que seja uma falsa esperança.

Estas igrejas acusam a Igreja Católica de exercer influência indevida no país e de beneficiar do reconhecimento e do privilégio que lhes são negados. Não acho que tenham um impacto significativo no futuro da nação, mas é certo que fazem parte do ressurgimento dos grupos pentecostais e evangélicos em África, criados por africanos atentos às questões com que as pessoas lidam no quotidiano e que se dizem alternativa à Igreja Católica e algumas denominações protestantes.

Creio que estas igrejas não irão desaparecer rapidamente, mas também não acredito que, num futuro próximo, possam suplantar a Igreja Católica no Congo.

© The Economist

No Sudão do Sul, o Papa fez questão de se fazer acompanhar do Arcebispo de Cantuária, Justin Welby, e do Moderador da Assembleia-Geral da Igreja da Escócia. Quão importante foi esta missão ecuménica?

Foi uma estreia e de grande simbolismo em muitos aspectos. Primeiro, porque estes são os líderes dos principais grupos religiosos no Sudão do Sul, por isso, inspiram imenso respeito. Espero que as pessoas tenham levado a sério a sua mensagem. Segundo, porque é bom vê-los a dar o exemplo de que, quando as pessoas se unem, são capazes de grandes feitos, incluindo coisas difíceis como fazer a paz entre inimigos jurados.

Estes três líderes têm estado activos no Sul do Sudão através de várias organizações cristãs envolvidas em ajuda humanitária, serviços sociais e negociações de paz entre beligerantes. A sua presença foi, por isso, a reafirmação de algo que cada um deles já faz há vários anos.

© Emeric Fohlen | Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS)

Esta foi a quinta viagem de Francisco a África. Todas as suas visitas têm sido inspiradoras, mas os seus apelos à paz e à reconciliação são ignorados por líderes políticos e militares. É uma causa perdida ou espera um legado mais duradouro?

O Papa não é um santo milagreiro. Veio como mensageiro da paz. Foi uma visita simbólica, uma afirmação de esperança no que é possível, de estímulo a não desesperar, por muito má que seja a situação. Temos, contudo, de ser realistas sobre a natureza complexa não apenas da RDC e do Sul do Sudão, mas também de África. O que precisamos é de uma solução política – e não religiosa – para os problemas

Líderes como o Papa Francisco dão-nos coragem, apelam a uma mudança de mentalidade e de caminho, para uma experiência de conversão.

A minha esperança é a de que, depois de ouvirem as palavras, por vezes duras, do Papa, os políticos no Congo e no Sudão do Sul mudem de atitude, trabalhando a favor e não contra os interesses das populações. Mas, sim, é verdade que em lugares como a República Centro Africana, que Francisco visitou em 2015, nada parece ter mudado. Na RDC, continuam as batalhas no Leste, com os rebeldes do M23 a causar estragos.

No Sudão do Sul, cometeram-se massacres na capital regional, em vésperas da chegada do Papa. No entanto, as pessoas de fé não podem desistir da esperança.

© Arlette Bashizi The Washington Post

Num artigo recente, para o site The Conversation, o senhor considerou que a viagem do Papa à RDC e ao Sudão do Sul coincidiu com “o momento que mais irá definir a Igreja Católica” – o processo sinodal, que “tem exposto fracturas” sobre temas vários, como o celibato, as mulheres na liderança, uma maior abertura à comunidade LGBTQI+. Em África, o professor destaca que “altos responsáveis da igreja do continente ainda não abraçaram a reforma mais ambiciosa desde o Concílio Vaticano II em 1965”. É isto um desafio ao pontificado de Francisco?

Não é um desafio ao pontificado de Francisco, mas ao Cristianismo, em geral, e ao Catolicismo, em particular. Creio que o processo sinodal é um momento especial para a Igreja iniciar um diálogo interno de forma aberta. Mas é normal haver desentendimentos. O que falta à igreja é desenvolver a atitude de olhar para as duas faces da moeda, e isto é um problema muito ocidental.

De um modo geral, os Africanos veem as coisas não de uma maneira dialéctica, mas complementar. Não se trata de LGBTQ contra heterossexuais, mulheres versus homens, padres casados vs padres celibatários, mas sim o conceito de ambos/para.

Por exemplo, mulheres e homens, LGBTQ e heterossexuais, padres casados e celibatários. No pensamento africano, estes não são se opõem, mas complementam-se. Não é uma coisa simples. As pessoas têm de compreender que há uma relação entre todos nós e que temos de abandonar o pensamento binário.

© Ernst Ulz | Wikipedia

Propus que o Papa Francisco fosse um árbitro neutro no actual debate fracturante na Igreja sobre a dignidade e os direitos das pessoas do mesmo sexo, para que actue como um moderador do diálogo.

Tal como o Papa Francisco pediu que os não-africanos “tirem as mãos de África” em termos económicos e políticos, também devem “tirar as mãos de África” em matéria de questões morais.

Francisco deve continuar a encorajar a abertura da Igreja ao diálogo sobre alguns dos temas morais contestados, sem tomar partido.

© Samuel James | The New York Times

Os católicos africanos são “a grande esperança” da Igreja Católica, não apenas porque aumentam em número, escreveu o senhor, mas porque se “reinventam e reinterpretam o Cristianismo, infundindo-lhe uma nova linguagem e vigor espiritual no seu modo único de adorar a Deus”. Como é fazem isso? Como é que a Igreja consegue cativar tantos jovens em África e continua a perdê-los na Europa e na América?

É preciso entender que não é agora que os africanos são mais religiosos. Os Africanos são, de um modo geral, pessoas muito religiosas. Não são mais religiosos por causa do Catolicismo, mas são mais católicos porque são religiosos.

No Catolicismo, encontraram algo que já existia nas suas crenças tradicionais. Portanto, os jovens em África também acham o Cristianismo muito atractivo pela mesma razão. Tudo se resume à realidade cultural que os rodeia. Em África, porque a religião é parte integrante da vida quotidiana, o Cristianismo capta a imaginação dos jovens, que têm contacto com a religião desde o berço.

Além disso, há muitos aspectos das culturas e espiritualidades dos Africanos que encontraram lugar no Catolicismo moderno, como a dança, actividades carismáticas e de justiça social, que atraem muito mais jovens em África do que na Europa.

© Samuel James | The New York Times

Jorge Mario Bergoglio, da Argentina, tem dedicado grande atenção ao Sul Global (ainda que só um africano desempenhe um importante cargo executivo no Vaticano: o arcebispo Protase Rugambwa, da Tanzânia, secretário do Dicastério para a Evangelização dos Povos). Se o próximo papa for africano, de que país poderá vir?

Não tenho certezas sobre quem será o próximo papa. Na minha cultura, não falamos sobre o sucessor de ninguém que amamos enquanto estiver vivo(a). Seria contra a cultura africana falar sobre o sucessor do Papa Francisco. Mas espero que ele nomeie mais africanos para serem prefeitos de alguns dos dicastérios da Cúria Romana. Nós, Africanos, merecemos mais lugares de alto nível à mesa da Igreja.

Sim, há uma possibilidade real de o próximo papa ser oriundo de África, mas deixamos o futuro nas mãos de Deus e rezamos pelo sucesso do pontificado de Francisco, principalmente que este processo sinodal nos permita caminhar para uma Igreja aberta, inclusiva, fiel e frutífera, a exemplo do Senhor.

Professor de Cristianismo Mundial e Estudos Africanos no Centro para o Catolicismo Mundial e Teologia Intercultural na Universidade DePaul, em Chicago, Illinois (EUA), o padre Stan Chu Ilo, é considerado uma eminência no estudo das culturas e tradições religiosas em África.
© Cortesia de | Courtsey of Stan Chu Ilo

Estes artigos foram publicados na edição de Março 2023 da revista ALÉM-MAR | These articles were published in the March 2023 edition of the Portuguese news magazine ALÉM-MAR

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