Uma “banda sonora de guerra” para Nobel da Paz

São judeus israelitas. Tocam com músicos palestinianos, argelinos e tunisinos. Uma belly dancer libanesa arriscou a vida num dos seus concertos. Atraem milhares de fãs árabes e muçulmanos. Os Orphaned Land actuaram várias vezes em Portugal – e acreditam que estão a mudar o Médio Oriente. (Ler mais | Read more)

Os Orphaned Land (aqui com a cantora Shlomit Levi), diz Roi Ben-Yehuda, que os propôs para Prémio Nobel da Paz, “reconstroem uma memória colectiva – a da era dourada da coexistência entre judeus, cristãos e muçulmanos”

O lugar onde Kobi Farhi vive “é tudo menos uma terra prometida ou uma terra santa”, por isso, a sua banda descrita como de death/doom metal só podia chamar-se Orphaned Land.

E é uma terra órfã, diz o co-fundador, um judeu israelita, porque “desde há milhares de anos que apenas conhece destruição e conflitos, com três religiões a fazerem guerra em nome de Deus”.

“Como nada aqui é sagrado, decidimos mostrar um caminho alternativo”, explica Kobi, o vocalista, numa entrevista, por Skype. “Cantamos em hebraico e em árabe, em latim e em inglês. Não são histórias de amantes, é uma mensagem de paz.”

“Não temos intenção de provocar – quando entoamos versículos do Corão, por exemplo, em palco não há garotas em bikini. Há, sim, muito respeito da nossa parte, e isso é visível no modo como as pessoas reagem. Não queremos que ninguém tome partido por um campo ou por outro.”

“Não somos um grupo tradicional de heavy metal. Não quisemos copiar o que já havia na América e na Europa. Tínhamos de ser diferentes. Usamos instrumentos e sons do Médio Oriente para projectar os cheiros e a atmosfera da região. E muita gente identifica-se connosco porque sabe distinguir entre povos e governos.”

Foi isso que Roi Ben-Yehuda notou quando, um dia, leu a seguinte observação de um fã, na página de Facebook da banda: “Embora eu seja apoiante do Hezbollah [movimento xiita libanês que “ambiciona destruir Israel”, segundo Kobi], quero que saibam que adoro os Orphaned Land e que vos ouço todos os dias, no meu carro, quando vou e venho do emprego.”

“Não tinha a certeza se este era uma demonstração a favor ou contra o que os Orphaned Land faziam, mas sinto-me atraído pela ideia de que a banda está a criar um espaço para um tipo diferente de interacções, valores e identidades entre inimigos”, afirma Roi, um académico que se especializou em Resolução de Conflitos.

O comentário do admirador do Partido de Deus, criado e financiado pelo Irão, encorajou Roi, judeu israelita-americano, a escolher os Orphaned Land como peça central da sua tese de doutoramento. “Musicalmente, eles foram pioneiros e sempre adorei o que eles faziam”, salienta.

“Também temos uma história em comum. Nascemos em Israel e fizemos parte da cena metal dos anos 1990.”

“Mantivemo-nos em contacto, acompanhei o seu progresso e sucesso. Hoje, o meu interesse vai para além da música: sinto-me fascinado com o modo como a arte pode unir povos em conflito – e os Orphaned Land fazem isso extraordinariamente bem.”

Roi passou a olhar os Orphaned Land como “uma força social” que se transformou “numa ilha de coexistência no meio de um mar de conflitos violentos”.

E acrescenta: “Através da sua música, mas também da colaboração com músicos árabes e muçulmanos, e uma vibrante comunidade de fãs, eles foram capazes de inspirar e estabelecer um tipo de relações pacíficas que ainda é possível entre israelitas e os seus vizinhos.”

Kobi, relembrando que já deu vários espectáculos em Portugal (o último em 2019), exulta ao contar-me como, numa digressão europeia, a banda “viveu dias inteiros num autocarro de 20 camas” com músicos tunisinos e argelinos.

“Ainda não há muito tempo, tocámos juntos com um grupo palestiniano da Jordânia”, enfatiza. “Somos amigos e esta convivência mostra que não devemos julgar-nos uns aos outros sem primeiro nos conhecermos.”

“Não somos vozes solitárias. Todos compreendemos a realidade complexa da região em que vivemos. Posso garantir que os extremistas não são a maioria.”

 “O meu interesse pela música começou na infância”, conta Kobi Farhi. “Nasci em Jaffa, e a minha casa fica perto de uma sinagoga, de uma igreja e de uma mesquita. Numa cidade [a maior do Norte de Israel] com judeus, cristãos e muçulmanos, há muitos feriados religiosos, e eu aprendi aqui muito sobre a importância da paz.”

“Em miúdo, brincava com todos sem discriminação; o nosso único interesse era o futebol. Detestei quando fui mobilizado para a tropa.”

“Não servi nos territórios ocupados. Era mecânico e reparava veículos militares, mas uma vez fui ao gabinete do comandante e pedi-lhe que me dispensasse, porque precisava de gravar dois álbuns. Estávamos em 1994.”

“Ele expulsou-me da sala, dizendo-me que eu era ‘propriedade do Exército’, e mandou-me para a cadeia durante um mês. Recusei completar os três anos do serviço obrigatório, frisando que preferia a prisão. Libertaram-me, ao fim de um ano, invocando ‘razões psiquiátricas’.”

Kobi Farhi, vocalista dos Orphaned Land: “Não somos um grupo tradicional de heavy metal. Não quisemos copiar o que já havia na América e na Europa. Tínhamos de ser diferentes. Usamos instrumentos e sons do Médio Oriente para projectar os cheiros e a atmosfera da região. E muita gente identifica-se connosco porque sabe distinguir entre povos e governos”
© Courrier International

Uma das imagens de marca dos Orphaned Land, que conta com a voz celestial de Shlomit Levi (evocativa das baladas judaicas iemenitas entoadas por Ofra Haza), é a indumentária.

Kobi Farhi veste-se de Jesus Cristo, e os outros membros – Yossi Sassi (guitarra eléctrica e acústica, alaúde, saz, bouzouki, chumbush e piano); Uri Zelcha (guitarra eléctrica, acústica e baixo); Matan Shmuely (bateria e percussão) e Chen Balbus (guitarra eléctrica e acústica, bouzouki e vozes) – envergam trajes de judeus ultra-ortodoxos e de árabes com kaffyeh.

Ninguém se ofende, garante Kobi Farhi. “Muita gente me achava parecido com Jesus, e eu considero-o uma personalidade espiritualmente muito forte. As vestes – que já não usamos em palco – fazem parte de uma coreografia; e os fãs entendem, porque apenas lhes interessa as canções.”

E as duas canções mais amadas, revela Kobi, estão nos álbuns El Norra Alila (1996) e The Never Ending Way of ORwarriOR (2010). Este é o poder das suas letras (IN: SAPARI):

A most honorable god I shell greet him/With singing and glory I will greet his coming/And like Moses and Aaron he will lead me/To his land above/ He will lend his ear and hear my voice/ And will send from above and help me/ ‘Cause like Moses and Aaron he will lead me. (“El Me’od Na’Ala”); Into this world I was born – innocence scorned/ Oaths were broken and pain bestowed – innocence mourned/ Trust betrayed, smiles were faked/Desire turned hate, faces of loved ones are long decayed/ Alone in this world, alone and so cold (…). 

Kobi assegura que a banda “nunca recebeu ameaças”, mas Johanna Najla, a belly dancer libanesa que actuou com eles no Hellfest, festival que junta, anualmente, em França, grupos de heavy metal, hard rock e hardcore punk, foi alvo de um édito religioso (fatwa) condenando-a à morte. Também está proibida de entrar em Beirute.

Não terá sido fácil aos mais radicais verem uma mulher de vermelho, bustier elevando o peito, uma rede expondo o ventre, longos cabelos negros deslizando a cada contorção do corpo, numa dança de sedução, junto a Kobi, descalço e com uma túnica branca.

A afronta terá sido maior quando ambos trocaram um abraço, quase fugidio, e uniram as bandeiras dos seus países: o cedro do Líbano e a estrela de David de Israel.

O final do concerto, em Julho de 2011, foi apoteótico, com milhares de pessoas a saltar e a aplaudir, braços no ar. “Unimos culturas e nações”, proclamou Kobi, destacando que, na audiência, havia espectadores da Tunísia, da Síria, do Iraque, do Líbano… “A nossa religião é a música.”

Numa entrevista por e-mail, diz-me a bailarina: “Como artista árabe, dançar com os meus irmãos dos Orphaned Land é muito natural, dado o facto de vivermos na mesma zona do mundo. Erguer as respectivas bandeiras, lado a lado, foi um símbolo de paz e de unidade, porque não há nada que eu mais preze do que a vida.”

“Não imaginei, por um segundo sequer, que iria gerar controvérsia. É certo que, oficialmente, o meu país e o de Kobi vivem em clima de guerra, mas não tinha a ideia da gravidade da situação, mesmo que a minha infância no Líbano tenha sido vivida em ambiente de conflito.”

Johanna Najla – que começou a aprender jazz e ballet aos 6 anos de idade; aprendeu raqs sharqi (dança do ventre) e hip-hop “de estilo afro-contemporâneo”, na Costa do Marfim, Nova Iorque e Paris; é mezzo-soprano e dá aulas de belly dance a crianças e adultos – confirma que desde o concerto com os Orphaned Land não tem autorização para regressar ao Líbano.

“Já não me fazem ameaças, mas continuo a viver em França, onde estudo dança e porque também tenho nacionalidade francesa”, refere. “Espero regressar, num futuro próximo, sem medo, porque nunca foi minha intenção magoar ou insultar.”

Quanto a Kobi Farhi, está a preparar o que descreve como “o melhor álbum”, entusiasmado com as parcerias bem-sucedidas com bandas do Magreb.

Um dos momentos altos da sua carreira, confessa, foi quando tocou na Turquia com músicos palestinianos da Jordânia.

“Queremos manter esta ligação”, frisa, manifestando orgulho (“mas também embaraço”) na iniciativa do amigo Roi: “Já ganhámos quatro prémios por promovermos a paz; ser nomeado para o Nobel é o máximo!” 

Em Nova Iorque, onde reside, Roi Ben-Yehuda mostra-se, particularmente, interessado na comunidade de fãs dos Orphaned Land. “Há poucos espaços, virtuais ou reais, que facilitem a comunicação e o contacto entre judeus, árabes e muçulmanos na região”, refere.

“O facto de todos partilharem o amor pela música fornece uma identidade comum que liga as pessoas. Os laços que são criados dificultam a comunicação negativa. As discussões entre fãs revelam apoio à banda e à sua mensagem; em tempos de crise, os fãs interagem.”

Porquê propô-los para o Nobel? “Eles merecem”, responde Roi. “Dou um exemplo: no período em que a Turquia cortou relações políticas, diplomáticas e militares com Israel, os Orphaned Land fizeram questão em manter os laços, doando as receitas dos seus concertos [em Ancara, Istambul, Esmirna…] às vítimas do sismo em Van, e ao fazerem, corajosamente em público, uma declaração de paz entre as duas nações.”

“Os seus esforços têm sido reconhecidos não só a nível popular mas também institucional, por parte de académicos e políticos.”

“As pessoas que não estejam a par das crises entre os dois países talvez não se apercebam do significado de tudo isto, mas é incrível. Eles tornaram-se embaixadores culturais e merecem a mais alta distinção.”

A petição pelo Nobel, adianta Roi, tem também como objectivo ajudar os Orphaned Land “a fazer história, a atrair atenção para a sua causa”.

A composição dos Orphaned Land tem sofrido algumas alterações. Em 2019, mantém dois membros fundadores (Kobi Farhi, o vocalista) e Uri Zelcha (baixo). A eles se juntaram Matan Shmuely (bateria), Chen Balbus (guitarra e Piano, que substituiu o co-fundador Matti Svatizky, em 2012, e Idan Amsalem (guitarra e bouzouki), que substituiu outro co-fundador, Yossi Sassi, no início de 2014
© Zoharon Photography | loudersound.com

O passo seguinte será “a nomeação e já tenho personalidades de renome que aceitaram dar os seus nomes”. Uma delas é Yuli Tamir, co-fundadora do movimento Peace Now e ex-ministra da Educação de Israel (2006-2009).

“Acredito que o futuro desta região depende, em grande medida, das pessoas que têm a coragem de desestabilizar os padrões da separação, do ódio e da violência.”

“Ao contrário dos tipos que defendem boicotes a Israel, creio que é através deste tipo de colaboração que as relações entre antagonistas podem ser transformadas construtivamente. Johanna teve a ousadia de dar um primeiro passo.”

“Tenho entrevistado muitos fãs e todos eles admitem que os Orphaned Land mudaram as suas vidas. Até aparecer esta banda, alguns grupos, como os Led Zeppelin, os Iron Maiden ou os Metallica, usaram escalas e sons do Médio Oriente no seu heavy metal, mas só quando os Orphaned Land entraram em cena é que estes dois géneros se fundiram num estilo singular e autêntico.”

“Como todas as formas de metal”, adianta Roi, “a música dos Orphaned Land é agressiva e até brutal, porque espelha o ambiente duro em que é produzida – uma banda sonora de guerra.”

“Em paralelo, ao usar instrumentos, ritmos e melodias do Médio Oriente misturando-os com o metal do Ocidente, e colaborando com artistas árabes e muçulmanos, a banda conseguiu também criar uma harmonia regional que, de certo modo, representa a ideia sónica de coexistência.”

“Esta fusão de horizontes culturais tem um significado que ultrapassa a estética – o que é invulgar no metal.”

“No contexto do discurso israelo-palestiniano (a questão da legitimidade do povo judaico à autodeterminação nacional)”, enumera Roi, “a música dos Orphaned Land ressoa: ‘Também nós temos raízes nesta região’”.

Por outro lado, “o facto de uma banda israelita criar um ‘metal oriental’, mostra às pessoas que é possível participar no processo de globalização sem temer a eliminação da cultura de cada um”.

Finalmente, “os Orphaned Land reconstroem uma memória colectiva – a da era dourada da coexistência entre judeus, cristãos e muçulmanos. Como o musicólogo Keith Negus nos recorda, ‘o movimento dentro ou através de géneros musicais é mais do que um acto musical: é um acto social’”.

[Yossi Sassi abandonou o grupo em Fevereiro de 2014. Foi substituído pelo guitarrista e produtor musical Idan Amsalem. No mesmo ano, os Orphaned Land ganharam o Prémio Metal Hammer, consagrando-se como “Global Metal Band of the Year”.]

© Ha’aretz

Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 12 de Novembro de 2012 | This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on November 12, 2012

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